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segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O SUPER-HERÓI COMO FATOR DE MOBILIZAÇÃO EM “BATMAN”

O texto abaixo é um trabalho acadêmico, realizado por mim em junho de 2013. Foi apresentado na 3ª Semana UMG - Saberes em Diálogo. Eu suprimi a última parte (Conclusão), por entender que ela interessaria estritamente àqueles que estavam cursando meu curso (Gestão para organizações do Terceiro Setor). Se algum maluco quiser ler integralmente, pode me pedir que envio o restante...


O SUPER-HERÓI COMO FATOR DE MOBILIZAÇÃO EM “BATMAN”


1) Introdução

Este trabalho objetiva analisar uma suposta relação entre os ideais presentes na figura simbólica do super-heroi e os processos e mecanismos de mobilização de grupo observados em trabalhos de autores como MOSCOVICI e HERSEY e BLANCHARD. Através da análise do filme norte-americano “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”, lançado em 2012, discutiremos a possibilidade de se motivar à mobilização através de ideais, e, mais ainda, discutiremos a metodologia de mobilização aplicada a uma ética de grupo. Num momento em que muito se conversa sobre questões de cunho político e polêmico – por exemplo, o aumento do estado de coerção, por meio da redução da maioridade penal e/ou da legalização da pena de morte – cabe a reflexão sobre os caminhos éticos, políticos, estéticos, pelos quais pode vir uma mobilização, seja ela de um grupo pequeno, dentro de um ambiente institucional, seja aquela que se transforma em corrente social. Em Batman – como em outras obras que envolvem super-heróis, como na graphic novel Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons – há uma visão de mobilização pautada em relações de sobrevivência, aonde afloram e se desenvolvem sentimentos extremos de justiça e vingança. Aplicadas ao nosso campo e, sobretudo, à nossa realidade, a das políticas públicas de cunho social, essas ideias podem apresentar soluções interessantes de mobilização ampliando nosso campo de visão e atuação.
Para desenvolver esta análise, observaremos, primeiro, a forma como os super-heróis surgiram nas histórias em quadrinhos norte-americanas, espalhando-se pelo mundo e alcançando enorme sucesso. A seguir, faremos breve análise do filme “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”, para, então, tecermos uma conclusão acerca dos conceitos e mecanismos de mobilização e liderança contidos no filme e suas relações com o mundo real.



2) O super-heroi: origem e mito

O super-herói – seja o dos quadrinhos, seja o do cinema, seja o dos games – é, no imaginário ocidental moderno, uma figura de ampla representatividade e influência. O super-herói é a extrapolação do herói, não só por causa dos superpoderes, mas especialmente por causa das “supervirtudes” presentes nesse tipo de personagem.
O primeiro super-herói da história foi o Superman, criado em 1938, nos Estados Unidos, por uma dupla de artistas judeus – Jerry Siegel (textos) e Joe Shuster (desenhos). O imediato e imenso sucesso desta criação fez com que, imediatamente, surgissem inúmeros outros “super-heróis” nos quadrinhos americanos, como o próprio Batman, criado em 1939 por Bob Kane, e dando origem ao que conhecemos, hoje, como um subgênero literário: as histórias de super-herói.
Apesar de ser considerado uma versão atualizada dos heróis gregos como Ulisses, o super-herói dos quadrinhos, conceitualmente, é um desdobramento de um tipo de herói moderno, originário dos folhetins e das novelas de aventura surgidos a partir da segunda metade do século XIX, como “Os três mosqueteiros” e “Ivanhoé”, embutido de valores anglo-saxões – a vitória por mérito, o triunfo do bem contra o mal etc. Este conceito se afasta - um pouco - da definição de Joseph Campbell, do herói que invariavelmente cumpre sua jornada cíclica para, depois, retornar ao ponto de partida como um herói transformado. O super-herói, ao menos no ato de sua criação, é bem mais elementar: ele combate o mal.
Para além do mero entretenimento, os heróis dos quadrinhos à época do surgimento do Superman eram, também, reflexo ideológico do anseio social norte-americano por uma levantada na sua auto-estima e pela reafirmação de sua identidade cultural e econômica, abaladas pelo “crack” da bolsa em 1929. Por causa da popularidade e inserção social dos quadrinhos, que saíam nos jornais diários ou em revistas de amplas tiragens, os super-heróis podiam adquirir, por fim, funções políticas: o desenvolvimento do super-herói das histórias em quadrinhos coincidiu com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Personagens como o “Capitão América” apareceram neste rastro, propagandeando e justificando a supremacia bélica e política americana. Assim, o super-herói extrapolou seu simplista conceito inicial, de defensor do bem perante o mal, tornando-se a representação simbólica do país aonde foi criado.
Comercial e ideologicamente, os super-heróis não somente resistiram ao tempo, como ganharam força, tornando-se marcas valiosíssimas, invadindo o cinema, a literatura, os videogames e toda a indústria de consumo.
Até meados da década de 1980, e apesar de evidente evolução narrativa ao longo deste tempo, foi mantida esta premissa básica nas histórias de super-heróis: a luta do bem contra o mal. A representação de um justiceiro empenhado em usar sua força sobre-humana para defender a sociedade. A história de super-heróis, neste contexto, é a manifestação gráfico-literária para um anseio, ou para um ideal de justiça coercitiva e maniqueísta, bem próprio do liberalismo norte-americano, aonde o bem se traduz em um conjunto de valores e virtudes que, se for o caso, devem ser impostos à força, e se contrapõe ao mal que é inato e se manifesta como uma força individualizada, e não como um resultado de situações e forças políticas e sociais. O “vilão”, para usar um termo próprio a este gênero de quadrinhos, é um ser aparentemente sem outras motivações para fazer o mal, a não ser o desejo e a vocação para tal. Nesse hipotético e simplista universo ficcional, não há, evidentemente, contextualização histórica, nem, tampouco, reações complexas de causa e efeito: as ações humanas são resultantes de si próprias. As noções de cidadania, direitos humanos ou justiça social são conceitos sem sentido dentro deste mundo. Não cabe, por exemplo, um super-herói discutindo políticas públicas com a sociedade civil, visando uma redução da criminalidade e uma conseqüente diminuição das pancadas que ele próprio distribui.
Embora esta ainda seja, em essência, a forma como este gênero de ficção narrativa se apresenta, a década de 1980 apresentou histórias em quadrinhos que trouxeram reflexões importantes acerca do tema. As principais são “V de Vingança” e “Watchmen”, escritas pelo britânico Alan Moore, e “Batman – O cavaleiro das trevas”, do americano Frank Miller. Esta última – publicada na forma de minissérie em 04 partes – é, aliás, a primeira a trazer um personagem-ícone dos quadrinhos de super-heróis dentro de uma temática adulta, para um público mais maduro. E não somente isso: “O cavaleiro das trevas” trouxe o super-herói a um mundo real, palpável e plausível, que refletiu as situações e o contexto histórico e político da época em que a obra foi escrita. Frank Miller retirou o personagem Batman do lugar simbólico em que ele se encontrava – o de um garoto que, ao ver seus pais sendo assassinados, resolve lutar contra o crime vestido de morcego – e colocou-o em outro âmbito, o de uma figura psicologicamente perturbada, repleta de incoerências e manias. Além disso, o autor põe outra questão moral: uma pessoa que se mascara e sai às ruas para fazer justiça com as próprias mãos não seria, afinal, um criminoso?
A visão dada por Frank Miller (e também por Alan Moore) aos super-heróis alavancou um novo nicho mercadológico dentro deste próprio segmento: o super-herói “adulto”, com aprofundamento da linguagem, questionamentos acerca da identidade e do caráter dos personagens e, especialmente, uma contextualização plausível, ou seja, a inserção dos personagens dentro do nosso universo.
Embora ainda existam histórias de super-heróis seguindo o roteiro original, simples e sem conflitos plausíveis, é a abordagem “adulta” aquela que mais interessa aos leitores maduros. Foi, também, esta a abordagem escolhida para a mais recente série de filmes cinematográficos do Batman, a partir de 2004.


3) Batman, o filme – uma análise

Em princípio, “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”, terceiro e último filme da série escrita e dirigida por Cristopher Nolan, é mais um típico filme de super-heróis, que insiste na velha dicotomia maniqueísta entre o herói e o vilão, bem como na luta entre o bem e o mal.
Dos filmes-franquia de super-herói, tão em voga desde o princípio dos anos 2000, “Batman” (e aqui incluímos também os dois filmes que antecederam este que estamos discutindo) é o mais plausível, na medida em que se busca, sempre, trazer verossimilhança ao fato, a princípio improvável, de um milionário resolver se travestir de morcego e se equipar belicamente para fazer justiça com as próprias mãos. Várias de suas premissas, além de diversos elementos de seu roteiro, aliás, foram baseados na obra de Frank Miller.
É precisamente aí que reside o problema: ao se colocar num degrau de seriedade crítica acima dos demais filmes do gênero, este “Batman” carrega, obrigatoriamente, questões morais mais profundas e pertinentes.
A implausibilidade de outros filmes do gênero – como “X-men”, por exemplo, aonde temos humanos geneticamente alterados das mais diversas e aleatórias maneiras – insere este tipo de cinema em um lugar ingênuo e de fantasia pura e aceitável, que não permite que façamos uma análise mais criteriosa de seus conceitos. O filme de Nolan, ao contrário, nos obriga a isso. Ao colocar em discussão questões relativas ao uso da violência para imposição da ordem, ou às novas formas de criminalidade, Batman “dá a cara a tapa” e nos impele a confrontá-lo com nossa realidade.
Para discutirmos o filme sob a ótica estrita da mobilização e da liderança, devemos fazer um recorte no roteiro, que é repleto de histórias e questões paralelas.
Basicamente, trata-se do seguinte: Batman está aposentado há oito anos. Desde então, a fictícia cidade de Gotham City (desde sempre, e agora mais do que nunca, uma clara alusão a Nova Iorque) convive com uma rigorosa lei contra bandidos, instaurada exatamente no momento em que o vigilante se retirou. Esta lei, por seu rigor e poder de coerção, impede que surjam novos focos de criminalidade na cidade.
É neste momento que um novo vilão aparece em Gotham City. Mais do que um novo rosto, Bane é um vilão diferente, que tem objetivos e estratégias precisos: ele deseja mudar o mundo para melhor. Para realizar este intento, entretanto, seu métodos não são dos mais virtuosos. Ele invade a bolsa de valores, explode bombas e instaura um estado de sítio na cidade. O que nos interessa, aqui, é que Bane não é um criminoso como tantos outros que vemos nos filmes e nas histórias em quadrinhos. Como dissemos, ele tem ideais e objetivos, que extrapolam o simples roubo ou o assassinato. A dinâmica de suas ações, suas estratégias e, especialmente, seu discurso, pressupõem um Estado falho, uma sociedade com problemas e vícios. Bane propõe, como solução única, um recomeço, uma revolução, mesmo que a custo de muita violência.
É, assim, a falta de comprometimento do Estado, apontada e denunciada pelo vilão do filme, o fator gerador da mobilização em torno de seus ideais. Bane assume, ainda que de forma tortuosa, o papel de líder clássico, o líder taylorista, único a conhecer os caminhos para se alcançar os objetivos – ainda que por ele mesmo propostos e defendidos.
Visto sob outra ótica, este vilão é o que denominamos, nos dias de hoje, um terrorista, que desconstrói os pilares do Estado por meio de vandalismo, violência e morte. Eis aí o pior dos vilões, pois ele torna-se um líder, arregimenta pessoas em torno de si e faz com que os outros se convençam de que sua causa é legítima.
Para coibir a evolução deste vilão, Batman sai de seu retiro e reaparece.
O personagem Batman sempre carregou, de forma muito clara, a imagem do super-herói com ideais. Nesta trilogia cinematográfica, as questões relativas a estes ideais estão muito presentes.
Bruce Wayne, a figura por trás da máscara de Batman, é um milionário, talvez o sujeito mais rico da cidade, e escolheu trilhar o caminho da “justiça com as próprias mãos”, de forma a garantir a segurança pública em Gotham City. Apesar de manter uma relação cordial com a Lei (embora neste último filme ele seja um foragido), Batman existe porque a Lei não dá conta do crime. Essa é uma premissa básica de todos os super-heróis, desde seu surgimento: preencher uma lacuna do Estado, relativa à escalada da violência.
Esta postura – a de alguém que, não satisfeito com a forma como o Estado lida com a violência, resolve agir por conta própria – é apoiada e festejada por muita gente, tanto dentro do universo de Batman (os cidadãos de Gotham City, o comissário de polícia) quanto fora (os leitores e telespectadores de Batman).
Batman também é, à sua maneira, um mobilizador, na medida em que tem milhões de seguidores em todo o mundo, que o acompanham e torcem por ele em sua luta contra criminosos como o Bane.
Assim, podemos colocar a imagem de Batman em uma posição paralela – e não oposta – à do vilão Bane. Ambos têm um comprometimento com suas causas. Ambos enxergaram falhas no sistema e resolveram corrigi-las. E, mais importante, as causas de ambos são fatores de mobilização, uma vez que as pessoas que os acompanham acreditam nessas causas e endossam-nas.
O conceito de um vilão idealista não é novo nos quadrinhos e, em especial, nas histórias do Batman, mas o cinema de entretenimento, ao passar a explorar esta ideia, populariza-a. Nos últimos anos, não foi somente este filme a fazê-lo: “Watchmen” e “V de Vingança”, ambos saídos de quadrinhos escritos pelo britânico Alan Moore, também utilizaram a figura do vilão contestador, que justifica seus atos em razão das falhas sociais. Trazendo o conceito ao nosso mundo e ao nosso cotidiano, podemos nos colocar no lugar de Bane em diversos momentos, mais ou menos complexos: quando ficamos parados no engarrafamento, por exemplo, ocorre uma situação de crise e insatisfação com o sistema. Bastaria, então, a voz articulada e coordenada de um “líder” para agregar forças e gerar a mobilização. Esse líder, esse “Bane” do dia-a-dia, não justifica, por si, a mobilização pelo uso da força. Mas traz à tona o fato de que se faz presente o desejo social em resolver as coisas não pela execução da lei – ou pela mudança constitucional desta – e sim pelo uso da força e pelo “justiciamento”. O que, aliás, é a mesma forma utilizada pelo Batman e pelos demais super-heróis.
Exemplos para isso tornam-se patentes tanto nas recentes manifestações populares vistas em todo o país – que, por mais que a mídia tente “domá-las”, chamando-as, de forma insistente, de manifestos “pacíficos apesar de alguns vândalos”, são, sim, revoltas populares, com predisposição para o rompimento violento de regras – quanto em ideias e comentários frequentes, como “bandido bom é bandido morto”, ou em movimentos favoráveis à redução da maioridade penal sob a justificativa de que existem menores de dezoito anos que “já são bandidos”. Estas expressões, muito comuns especialmente após a explosão das redes sociais, denotam uma moral vingativa e reacionária, presente desde sempre nas histórias de super-heróis e, especialmente, em “Batman”.

O filme de Cristopher Nolan, por trazer à tona, de forma mais requintada do que o vulgo dos filmes de super-herói, a questão maniqueísta do bem vencendo o mal, impõe-nos uma encruzilhada moral: de que lado estamos? Do lado do vilão, com sua proposta de revolução terrorista, ou do herói, com sua ética bélico-justiceira?

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Nossa* participação no FIQ


George Pérez desenha para o Paratodos

Quando Afonso nos convidou para o FIQ 2013, mais uma vez com a ideia de imprimir algo dentro da Serraria (como fizemos em 2011 com a Graffiti FIQ), confesso que me vieram em mente duas coisas. A primeira é que, até então, eu não tinha tanta certeza se nossa experiência no FIQ 2011 tinha sido assim bem-sucedida. Não sei se a revista que saiu no fim das contas foi a que esperávamos. Foi o que deu pra sair, esta é a verdade, pois as dificuldades e desafios foram maiores do que o previsto. Mas, bem, se nós recebemos novo convite, para repetir tudo este ano, é porque algo de bacana teve, e isso me deixou mais aliviado.
A segunda coisa que me veio em mente foi: “cara, não vou encarar esta história de ‘métodos artesanais de impressão’ de novo!” Porque pode até ter sido legal, mas foi muito sofrido. Então a ideia do Piero, de utilizar uma fotocopiadora de última geração, veio a calhar. Somado a isso, havia outro questionamento interno: entre uma edição do festival e outra, a Graffiti (a revista) havia fechado as portas! Iríamos ressuscitá-la neste FIQ? Aí surgiu a ideia do Paratodos – um jornal diário para cobrir jornalisticamente o festival, de dentro para fora. Que pudesse de alguma forma retroalimentar o FIQ de informações e atualizações.
Porque “Paratodos”? Desde que começamos a ventilar a ideia de um jornal, a proposta era a de, ao mesmo tempo em que fôssemos um canal de notícias, pudéssemos também prestar homenagem a alguns dos principais momentos históricos da HQ mundial. De cara, imaginamos cada edição remetendo, graficamente, a estes momentos, que seriam os seguintes: linha clara e quadrinhos europeus; quadrinhos underground e “comix”; era de ouro dos quadrinhos americanos e quadrinhos brasileiros independentes. Depois resolvemos fazer uma quinta edição (de início eram apenas quatro), e esta ficou sem tema. Para completar, o nome “Paratodos” veio no esteio das homenagens, agora para reverenciar esta lindíssima publicação do início do século XX, editada e ilustrada pelo imortal J. Carlos.
Mas na prática a teoria é outra, como se diz por aí. Diante da inevitabilidade do prazo curto, pois tínhamos que fechar as edições no início de cada tarde, tivemos sérias dificuldades em sustentar a parte gráfica do jornal. Ideal é que pudéssemos, munidos de referencial histórico (revistas em quadrinhos de cada época contemplada, obviamente), criar temas para cada edição, que fossem completamente diferentes uns dos outros e que remetessem diretamente aos momentos históricos citados acima. Seria lindo que o layout de cada número fosse único e exclusivo, e mais bacana ainda se os conteúdos correspondessem ao visual. Mas não é fácil agendar, entrevistar, decupar, editar, revisar e ainda criar graficamente em 24 horas. O Paratodos tornou-se, então, um veículo quase que exclusivamente jornalístico. Deixamos um pouco de lado o cuidado e o esmero gráficos, como sempre fizemos quando produzíamos a Graffiti.  Mesmo assim, encontramos boas soluções para as capas – como a edição 2, com desenho de uma moça que veio de Curitiba especialmente para o Festival, ou a 4, com foto do Laerte, sem texto.
Por outro lado, se me permitem uma autocrítica positiva, acho que fomos excepcionalmente  bem nos textos. Os textos de abertura (#1) e de fechamento do FIQ (#5) são matérias robustas, reflexivas e cujos pontos de vista diferem, em parte, de outras visões a respeito do Festival que tenho visto por aí. O que merece uma discussão a respeito. Mas isso é assunto para outro momento. Também merece destaque a acertada escolha da Priscila Cristina como nossa colunista. A Priscila foi escolhida como um contraponto: além de escrever bem, ela não entendia nada de quadrinhos e tinha uma visão estereotipada sobre quadrinistas e apreciadores de hq. Resolvemos, justamente, explorar isso.




Escrever textos pertinentes, que pudessem interessar ao grande público do Festival, editá-los, revisá-los, fotografar, diagramar e cuidar para que as impressões ficassem boas, diariamente e sem concessões (apenas nossos atrasos para soltar as edições), isso tudo somado, foi uma tarefa hercúlea e de intensa pressão. Todo mundo me perguntava: “Mas vocês são malucos? Masoquistas?” De fato foi algo exaustivo, que me fez – mais uma vez – perder praticamente tudo o que aconteceu no FIQ (só participei de uma mesa – aquela em que fui mediador). Mas foi recompensador!
Adorei a experiência. Foi lindo criar um veículo que, a certo ponto do dia, era a referência de informações do Festival. Todos procuravam o Paratodos: os convidados, os expositores, o pessoal que estava trabalhando no evento, e, claro, o grande e enorme público. Foi gratificante saber que éramos um canal de divulgação para os lançamentos, os estandes, as festas e os eventos que estavam acontecendo. Pena não podermos divulgar tudo: todo dia, muita coisa ficava de fora.
Conseguimos montar uma minirredação, formada por um pessoal muito criativo, competente e voluntarioso, que se comprometeu com a qualidade, os prazos e as exigências a que nos propusemos, de antemão, a cumprir. Essa equipe, aos poucos, ficou bastante entrosada. Ah, se o FIQ tivesse dez dias ao invés de cinco! Rsrrs. Mas não há o que reclamar. Este time foi formado pelas jovens formandas da Oi Kabum, Isabela Campelo, Luisa Alcântara e Priscila Cristina, além do Bruno Azevêdo, genial escritor e quadrinista de São Luis, que topou nosso desafio e não pisou na bola, o Erick Azevedo, roteirista, educador e também grande escritor, além de mim, do Rafael e do Piero, os remanescentes da velha e boa Graffiti. Tivemos, por fim, a inestimável contribuição do Guga Schultze, um dos convidados do FIQ, nosso colaborador de longa data e do qual somos fãs, além do Ricardo Martins, velho camarada. E, claro, de muitos outros artistas e convidados do FIQ que se dispuseram a colaborar, seja com tiras e ilustrações, seja com entrevistas.
Devo meus agradecimentos, por fim, em nome de toda a equipe do Paratodos, ao Ivo Milazzo, ao Laerte, ao Geoge Pérez, ao Peter Kuper, ao Afonso, ao Daniel Werneck, ao Cristiano Seixas, ao Carlos da Livraria Leitura, ao Heitor Pitombo (que escreveu até matéria pro jornal), ao Marcelo D´Salete, ao Jeremie Nsingi, ao Jal, à Sonia Luyten, ao Luis Felipe Garrocho, e a todos os que se dispuseram a dar uma palavrinha, ou a ceder alguns minutos de contribuição para o jornal.
Serei sincero: neste momento, no calor do pós-guerra, não sei se quero repetir a experiência em 2015. Participar do FIQ de alguma forma, coisa que ocorre praticamente desde 1999, é sempre uma honra e uma motivação muito grande. Mas não posso esconder que esta foi a mais cansativa e exigente de todas as participações!


*Graffiti

Confira um quadrinho do zine A Memória

Posto uma pagina que desenhei para o fanzine "A Memória", lançado no FIQ.


quinta-feira, 30 de maio de 2013

INTERFERÊNCIA ESPAÇO-TEMPORAL

Uma carta voltou, como acontece com tantas outras, à minha seção no escritório central dos correios. O motivo estava escrito a mão pelo encarregado, cuja caligrafia era quase ilegível: “Rua dos Caiapós, 234 - endereço inexistente”.

Até aí, tudo bem. Em meu ofício, ocorre de recebermos cerca de cem correspondências por dia pela mesma razão. Em geral isso acontece pela pressa ou pela desatenção do remetente. O que, convenhamos, é quase a mesma coisa.

No caso específico daquela carta, me chamou a atenção a sua aparência singular. Era um envelope retangular, branco, parecendo antigo. Talvez vindo de alguma destas papelarias dos bairros de rico, ou dos shoppings, que vendem artigos de luxo imitando antiguidades, como se tudo do passado fosse melhor ou mais bonito do que as coisas de agora. Os nomes, tanto do remetente quanto do destinatário, estavam lindamente escritos em tinta preta, se vocês me permitem o adjetivo. É raro ver alguém com uma caligrafia dessas, nos dias de hoje. O selo era, com certeza, antigo, de uma época em que os selos não traziam nem data. Vinha estampado um rosto, provavelmente algum presidente de antigamente, mas não havia o seu nome. Estava escrito apenas: “Brazil – 100 réis – Correio”. O carimbo, porém, era recente e reconhecível: certamente aquela carta estivera em nossa agência, e algum carimbador inconseqüente deixara-a passar, mesmo com aquele selo improvável. Ao carteiro, toca entregar a carta no endereço correto, não importando a proveniência ou a autenticidade do selo. Se ele não encontra tal endereço, retorna com a carta, e ela vem parar na minha mesa. Eis o que ocorreu, em resumo.

A princípio, julguei tudo aquilo como sendo um chiste. Uma brincadeira de alguém espirituoso da minha seção, para me fazer confuso, me observar de longe e rir do meu rosto incrédulo. Isto já foi feito antes, de outras maneiras, porém.

Se não fosse assim, esta carta teria, certamente, despertado a atenção de algum de meus colegas. No entanto, ninguém deu a mínima para o episódio – ou melhor, aquilo nem sequer foi considerado um episódio: apenas uma correspondência com endereço inexistente, algo enfadonho, corriqueiro, e que dizia respeito apenas a mim e à minha função de remeter a carta de volta ao seu autor, se isso fosse possível.

Não o fiz imediatamente; guardei a carta em minha gaveta. Se se tratasse de brincadeira, eu não desejava ser pego assim, facilmente, pelo sujeito humorista, quem quer que fosse. Por isso, decidi guardá-la, examiná-la posteriormente e tentar desmascarar o autor do trote. Mas confesso que o excesso de trabalho e os atropelos do ofício fizeram-me esquecer dela: permaneceu guardada e intocada por trinta dias.

Porque trinta dias depois chegou às minhas mãos outra carta com endereço errado, do mesmo autor, para o mesmo destinatário. Aliás, era uma carta com as mesmas características da primeira. O envelope em estilo antigo, o selo de cem réis, a caligrafia rebuscada. Àquele ponto, percebi que seria difícil tratar-se de uma facécia: quem se daria ao trabalho de, um mês depois, repetir todo o processo? Não tinha graça. Comecei a desconfiar: haveria algo fora dos quadrantes ali.

Peguei as duas cartas e as levei para casa. Abri a primeira: dentro, havia uma folha de caderno pautado, dobrada duas vezes para caber no envelope. Estava escrita, evidentemente, pela mesma pessoa que escrevera os nomes no envelope: percebia-se pela caligrafia de novo acurada. Era uma declaração de amor. Seu autor se dizia perdido pela Senhorita..., apesar de todos os fatores que poderiam impossibilitar o relacionamento entre os dois: a rejeição dos pais dela, o fato de ele ser um humilde pobretão que morava no Barro Preto e, especialmente, por ser um trabalhador de poucas perspectivas econômicas, e não um estudante, um filho de nobres, alguém que, enfim, pudesse levá-la a Paris ou mesmo ao Rio de Janeiro para passear. Ele lamentava todas estas coisas, mas dizia que seu amor por ela era capaz de vencer quaisquer trincheiras e obstáculos, e que ele estava disposto a lutar bravamente por ela, contra tudo e todos. Ao final da folha, a data: 26 de outubro, 1914.

O segundo envelope também trazia uma folha de caderno dobrada. Reproduzo o texto contido nela, na íntegra:

Minha....
Não consigo compreender as motivações pelas quais a Senhora não respondeu à carta que te mandei um mês atrás. No que toca aos serviços dos correios, parece que ela foi entregue. Ao menos assim me informaram os responsáveis pela tarefa. Pretendo crer que teus genitores, que tão pouco apreço têm pela minha pessoa, são os responsáveis pela interceptação da carta, e, em razão deste fato, pelo vosso desconhecimento acerca dela. Pois caso seja qualquer outro o motivo, significará que não compartilhas os mesmos sentimentos que eu.

Assim sendo, realizo nova tentativa: cá estou, se não de corpo presente, ao menos em espírito, através destas palavras rabiscadas, mais uma vez a declarar pela Senhora não só o meu amor, mas também o meu compromisso em me casar contigo. É o que farei, pois assim te jurei, e, como já sabes, sou um homem que honra o que fala.
Já não me importa o que pensam os teus familiares, pois não foi a eles que dei a minha palavra, e nem tampouco foi a eles que ofereci meu coração.

Fico, então, esperando, até que resolvas responder, ou então até que teus pais enfim deixem que leias minhas cartas, e compreendam que minhas intenções para com a Senhora são as mais nobres e preciosas deste mundo.

Do sempre seu, ....
Belo Horizonte, 27 de novembro, 1914

Mais do que qualquer outra coisa neste estranho caso, o que me intrigou e, sobretudo, me afligiu, foi o que o autor dissera no primeiro parágrafo, a respeito do envio da carta: “No que toca aos serviços dos correios, parece que ela foi entregue. Ao menos assim me informaram os responsáveis pela tarefa.” Muito estranho! Como, então, elas – a primeira e a segunda cartas – haviam voltado aos correios, sob a alegação de “endereço inexistente”? Havia algo inquietante naquilo, e eu me senti na obrigação de investigar.

Na manhã seguinte, cedo, caminhei até endereço referido no remetente. A rua dos Caiapós é um local movimentado do centro, próximo à rodoviária da cidade. Quem é meu conterrâneo sabe bem o que se passa por lá. Ao dizermos “lá na Caiapós”, estamos usando o nome da rua, e por conseqüência do grupo indígena que empresta o nome a ela, para dizer “lá no baixo meretrício”, ou “lá na zona”, ou ainda “lá no puteiro”, ou como quer que a sua puerilidade prefira se referir à oferta de sexo por dinheiro. Porque a Rua dos Caiapós, desde há muito, é, quase totalmente, um aglomerado de velhos e decrépitos hotéis – que se denominam hotéis somente para fugir das letras frias da Lei – aonde se hospedam e se prostituem moças de todo o tipo, idade, altura, peso, classe social, cor de pele, e por onde circulam homens igualmente de genética e origem variadas, em busca, óbvio, de sexo pago. É uma rua onde indubitavelmente impera a decadência. Décadas atrás, porém, a rua era apenas uma parte “boêmia” da cidade, abrigando cassinos, bordeis, restaurantes e bares, tudo com muita classe e relativo bom gosto, segundo os historiadores. Havia, também, residências familiares ao longo da rua.

Andando por ela, de um lado para outro, foi fácil identificar que, realmente, o número duzentos e trinta e quatro do envelope não existia. Pode ser que a casa tenha sido demolida, pensei. Ou, o que é mais provável, mudou-se a numeração, como ocorre de tantos em tantos anos em uma metrópole que cresce indefinidamente como a minha.

Foi então que me deparei com uma antiga construção, destoante da paisagem da Rua dos Caiapós, e da qual só restava, praticamente, a fachada. Era uma fachada de arquitetura antiga, como a do prédio central dos correios. Minha impressão foi de que aquela construção, no passado, era um sobrado, ou algo assim. Agora, da fachada para dentro, só restavam escombros, pedaços de tijolo, telhas e bastante lixo acumulado, certamente deixado por moradores não-autorizados que por ali passaram ao longo de muitos e muitos anos. Era uma casa de dois andares. Ainda restavam as grades do que parecia ser uma varanda, de frente para a rua, mas, em lugar da varanda, havia agora somente lixo. As janelas frontais, sobre a varanda, foram cobertas por cimento e, por cima do cimento, havia restos de cartazes publicitários, tipo “lambe-lambe”. Acima, já próximo ao telhado, como que para decorar e tornar imponente a fachada, havia uma série de floreios esculpidos na parede. Ainda bastante intactos e visíveis, se podia ler os números “234” dentro de um círculo todo decorado, bem no meio dos floreios.

Era ali, portanto, a residência da Senhora..., por quem o Senhor... estivera perdidamente apaixonado, nos idos de 1914.

Havia uma loja de produtos chineses na esquina. Comprei um tubo de cola, e, com ela, lacrei novamente os envelopes. Voltei à casa e coloquei-os na caixa de correio – que também se conservava intacta.  O que mais eu poderia fazer?

As cartas estavam, enfim, entregues, ainda que com algum atraso.


Dias depois, chegou às minhas mãos mais uma missiva do insistente galanteador do passado. De novo, ninguém deu atenção a ela. Desta vez, pequei pela indiscrição e decidi abrir o envelope sem pestanejar.

Dizia a carta:

Minha querida
Não serias capaz sequer de imaginar o tamanho de minha alegria e satisfação ao receber uma tua resposta. Também não consegui encontrar o motivo para o atraso com que as cartas chegaram às tuas mãos, mas folgo em saber que não houve interferência dos teus pais. Este fato, porém, torna-se pouco importante diante da notícia que me trouxestes, de que também foste acossada pelo fogo da paixão, e que fomos, sem dúvida, feitos um para o outro. Disso eu tinha certeza!
Assim sendo, seria mesmo interessante se eu fosse, de pessoa, à tua residência, afim de me declarar aos teus. O que achas? Não te parece uma idéia aprazível? Aguardo, portanto – e ansiosamente – a tua resposta, que, tenho certeza, será positiva, para, então, enviar um bilhetinho ao teu pai, marcando o encontro. Mas este bilhetinho, eu o farei chegar em mãos, através de um mensageiro.

Para ter a certeza que chegará no tempo certo!

Do sempre seu, ....
Belo Horizonte, 16 de dezembro de 1914


Esta foi a última carta do passado a aparecer. Naturalmente, coloquei-a na caixa de correio da casa abandonada, da mesma forma que fiz com as anteriores. Não restavam dúvidas de que as cartas haviam chegado ao destinatário. Missão cumprida, e a minha intervenção tinha sido decisiva. Não me detive em saber o porquê deste desvio de rota, de tempo, de espaço, entre o momento em que tais cartas chegaram ao correio, há quase cem anos, e o momento em que elas apareceram na minha mesa. Tampouco fui capaz de avaliar como estas cartas puderam, novamente, retornar no tempo, após terem sido colocadas em uma caixa de correios de um sobrado há muito esquecido. Assim como estes fatos tornaram-se pouco importantes para o autor das cartas, já que elas chegaram à sua amada, para mim também ficou obsoleto encontrar razões científicas para esta história. Há um motivo – sempre há –, mas creio que ele esteja fora do meu alcance. Só sei que estive participando de alguma coisa bastante especial. Espero, espero mesmo, que este casal tenha vivido momentos realmente felizes depois do que aconteceu. Isso é tudo. 

domingo, 26 de maio de 2013

A Seita

1
Ela surgiu há cerca de mil anos, em algum local obscuro de Lisboa. Foi trazida não se sabe quando ao Brasil por um falso degredado, que sacrificou sua vida e sua carreira em Portugal em nome e em defesa da Seita. Pode ser que o mesmo tenha ocorrido em outras colônias portuguesas, mas vamos nos ater ao braço brasileiro da Seita, porque é onde ocorre a história que será contada a seguir. De maneira geograficamente mais objetiva, precisamos que este relato acontece em Belo Horizonte, metrópole brasileira não tão vistosa quanto aquelas outras que já conhecemos muito bem e que não precisam ser citadas.

A Seita nasceu com um propósito muito claro e, por assim dizer, simples: dominar o mundo. Para dar cabo deste projeto, foi elaborado um plano, este sim extremamente detalhado, intrincado e dispendioso, e cuja execução deveria durar 1372 anos. Ou seja, faltam ainda alguns séculos para que a Seita tome o seu lugar no topo, não havendo, portanto, cidadão de nossa geração capaz de testemunhar o sucesso ou a falência da coisa, quando for o momento.

Para que não haja falhas ou desvios no cumprimento de todas as etapas deste longo plano, um livro de regras foi deixado pelos fundadores da Seita. Trata-se de regras rigorosas e fatais caso sejam descumpridas. Claro, uma regra capital diz respeito ao anonimato absoluto. Revelar a existência da Seita, seus objetivos e suas particularidades, são práticas passíveis da condenação à morte.

No Brasil, há doze iniciados. Eles foram escolhidos por seus antecessores, que, ao atingir determinada idade, deixaram como legado suas posições de portadores oficiais dos segredos da Seita. Aquele que é escolhido para fazer parte da Seita deve aceitar e obedecer a tudo o que lhe é confiado, sem questionar absolutamente nada. Se ele não aceitar, morrerá, pois, como já ficamos sabendo, ninguém deve ter conhecimento da Seita, a não ser os seus iniciados.

2
Adelino Prado Godinho saiu lentamente do cartório, no centro da cidade, aonde havia resolvido uma tarefa qualquer de ordem burocrática, e que dizia respeito ao pequeno terreno onde morava com sua esposa, seus cachorros e sua criação de galinhas e codornas. Dirigiu-se à praça da rodoviária, aonde entraria em um ônibus para retornar à sua casa. Deveria ter uns quarenta e poucos anos, e deixava transparecer uma postura cansada, a coluna encurvada, os olhos fundos, o rosto cadavérico cheio de rugas precoces, a calvície mal disfarçada por um penteado para a frente da testa. Ele vestia uma camisa de tecido fino, azul clara de bolinhas brancas, de mangas curtas, abotoada até a altura do pescoço. Mesmo de longe, podiam ser percebidos alguns furos na camisa, indicando que era bem velha, e demonstrando também que, possivelmente, seu dono não dispunha de muitas opções de vestimenta. O mesmo se poderia dizer das calças, que eram de linho, brancas, porém amareladas pela umidade, pelo sol, pela chuva, pelo tempo, enfim. Calçava um surrado sapato social marrom, que se poderia dizer que lhe foi doado por alguém. O senhor Adelino Prado Godinho não tinha, definitivamente, a aparência de um indivíduo saudável, tampouco de alguém que tinha a vida financeira solucionada.

A abordagem a um iniciado, segundo rezam os preceitos constantes no Livro da Seita, deve ser feita na rua, ou no meio da multidão. Ninguém mais pode saber que o iniciado foi abordado, por isso o encontro deve se passar como um casual esbarrão de rua, para em seguida evoluir para relações mais aprofundadas. Assim sendo, Valter Dias Silva, de 35 anos, conhecido dentro da seita como iniciado B42, sendo que a letra “B” indica “Brasil”, atravessou a avenida decidido, apertou o passo assim que alcançou a calçada e se aproximou do escolhido.

- O senhor é Adelino Prado Godinho? – Valter nunca havia visto Adelino, nem sequer uma fotografia sua. Aquele deveria ser Adelino, pois as diretrizes de sua missão indicavam que um tipo com aquelas características passaria por aquela rua precisamente naquele momento. Ele faria duas perguntas que iriam dirimir quaisquer tipos de dúvida acerca da identidade do escolhido. A primeira dizia respeito, justamente, ao seu nome. A afirmativa do outro dependeria de sua boa vontade e de sua confiança no interpelador. A segunda pergunta dependeria, naturalmente, da resposta dada.

- Sim. Por quê?

- Ah... não pretendo incomodá-lo. Pode me responder, por favor, qual sua data de nascimento? – A gentileza, neste caso, era fundamental. Ajudava a convencer o outro de que não se tratava de qualquer tipo de enganação ou abordagem maliciosa, tão comum nos dias que correm, sobretudo em cidades de grande porte.

- 24 de julho de 1968. Por que o senhor deseja saber quando nasci?

A resposta dele foi satisfatória. Era o escolhido, não restava mais dúvida. O iniciado B42, que, a despeito de seu árduo treinamento, estava nervoso, ficou aliviado, pois foi bem mais fácil do que imaginara.

- Eu preciso conversar com o senhor mais tranquilamente. O senhor se importa se lhe pago um café?

Aquele era, em qualquer circunstância, um convite estranho. Adelino franziu o cenho, como se demonstrasse não ter gostado nada daquilo. Observou o desconhecido com ar curioso. Ele havia algo a dizer, e sabia seu nome. Uma proposta? Envolveria dinheiro? Resolveu acompanhá-lo, mas sem fazer completamente o jogo dele.

- Podemos nos sentar num banco da praça, que tal?

Valter achou interessante a reação do escolhido. Segundo relatos dos autos da Seita, alguns escolhidos, ao sofrerem a abordagem, rejeitavam-na totalmente, e nova abordagem deveria ser feita em momento posterior. Outros desconfiavam por um bom tempo, e um intrincado trabalho de sujeição deveria ser feito no ato da abordagem, na rua mesmo. Valter estava preparado para isso. Fugir do protocolo não era, naturalmente, uma prática desejada pelos iniciados ao realizar um encontro como aquele, algo tão delicado e que exigia uma responsabilidade imensa. Mas era algo que podia ocorrer, e circunstancialmente ocorria. Ele próprio, Valter, ao ser abordado, há décadas, achou que o velho iniciado era um maníaco sexual que desejava molestá-lo.

3
Caminharam até a praça da rodoviária, que ficava a alguns minutos. A praça estava, como de hábito, repleta de gente. De moradores de rua a recém-chegados de qualquer parte, passando por vendedores de bugiganga chinesa, policiais, portadores da palavra de deus, ladrões, trabalhadores e vagabundos, cidadãos de toda a espécie. Sentaram-se em um banco.

- Senhor Adelino, me chamo Valter. Faço parte de um grupo de pessoas muito seleto. Este grupo é guardião de informações extremamente importantes, que estão sendo guardadas até o dia em que vai acontecer uma grande realização, e este grupo terá alcançado seu objetivo. Nós nos chamamos “A Seita”.

Adelino fitou o outro por um ou dois segundos. Parecia não ter entendido nada, o que era compreensível.

- É uma religião?

Valter sorriu. Aquela era uma reação esperada, e indicava que alguma coisa ele havia entendido.

- Não, não se trata de religião. Envolve religião também, mas não é nada que se pareça com o que esses pregadores fazem – ele apontou para um sujeito no meio da praça, que apontava o dedo para o alto, segurava a bíblia apertada contra o peito e gritava para quem quisesse ouvir. – Na verdade, nós seguimos um plano, e fazemos de tudo para que tudo ocorra como planejado. É tudo bem simples.

- Ok, seu Valter. E o que o seu grupo quer comigo? Vocês estão me seguindo? Fiz alguma coisa contra o seu plano?

- Não, o senhor não fez nada contra o plano. – Valter pensou que, caso isso ocorresse, sim, eles o seguiriam, mas com propósitos muito mais sinistros. – Na verdade, nós estivemos seguindo seus passos, e concluímos que você é a pessoa ideal para fazer parte de nosso grupo, a partir de agora. Você está sendo convidado para fazer parte da Seita.

- Sério? Por quê?

- Bem, isso vem lá de cima, não posso dar maiores detalhes. Acham você um cara legal, ponto.

- E o que eu ganho com isso?

- Bem, sua vida não muda muito. Você terá que ler nosso livro de regras, que contém o plano e o regulamento do grupo. Você deverá manter segredo absoluto. E você deverá realizar algumas tarefas, que lhe serão, eventualmente, passadas. Uma ajuda de custo de três mil e quinhentos reais lhe será fornecida todo o mês. E sua vida terá proteção especial, como acontece com todos nós.

Três mil e quinhentos ao mês, Valter sabia, era bem mais do que o outro ganhava fazendo seus bicos e vendendo os ovos das galinhas que criava. Deveriam seduzi-lo. Mas, para sua surpresa, não foi isso que, aparentemente, chamou a atenção de Godinho.

- Proteção especial? Contra o quê?

- Bem, contra as intempéries da vida, se é que você me entende. Você pode sofrer um acidente automobilístico, por exemplo, e precisará de auxílio.

Adelino franziu de novo a testa, e ficou olhando para o alto, como se estivesse pensando em algo a dizer. E de fato estava:

- Esta proteção envolve também, tipo... Guarda-costas, que te acompanham em qualquer lugar aonde você vai?

- Hmmm... na verdade não. Se ninguém sabe quem somos, não precisamos de seguranças a nos acompanhar.

- Foi o que pensei.

Em questão de segundos, Adelino puxou o punhal da cintura e, antes mesmo que Valter percebesse o que ocorria, sua barriga já havia sido perfurada profundamente e com a destreza que só um matador treinado para aquilo poderia ter. Seus olhos se abriram, como numa última surpresa, e assim ficaram, observando, já inertes, o seu assassino. Adelino se aproximou de Valter e o enlaçou em volta do pescoço com o braço, como quem abraça a um amigo. Endireitou-o, numa tentativa de mantê-lo sentado. Escondeu o punhal, ainda cravado no abdômen de Valter, com o próprio braço do defunto. Não poderia retirá-lo, pois o sangue jorraria para fora. Dessa forma, com Valter sentado e olhando para o nada, demoraria alguns segundos até que alguém percebesse que se tratava de um morto. Adelino já teria, então, desaparecido.

Adelino se levantou e começou a caminhar em direção à rodoviária. Se misturou na multidão e, de fato, sumiu.


O glorioso e complexo plano da Seita começava a ruir.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

História de Amor


Em uma cidade, que pode ser grande ou pequena – decida você, leitor–, existia uma biblioteca. Sobre o tamanho da biblioteca, decido eu: era uma enorme biblioteca, das maiores que já existiram. E, além de grande e espaçosa, era linda, pois tinha três andares, e cada andar era repleto de prateleiras de alto a baixo, que pareciam se estender infinitamente. Havia livros de todo os tipos, tamanhos, encadernações e cores. Havia romances, enciclopédias, livros de arte, de história, atlas de todos os tipos e épocas (porque o mundo está sempre mudando sua geografia), além, é claro, de uma grande prateleira só de livros infantis. Que ficava, naturalmente, mais embaixo. A impressão que se tinha, imediatamente quando se entrava na biblioteca, é que ela devia conter todos os livros existentes no mundo.

Era a biblioteca da cidade. Não sei se havia outras, mas era aquela por quem todo mundo tinha apreço. Os moradores da cidade achavam que a biblioteca pertencia a eles, e de certa forma eles tinham razão. É o mesmo sentimento que todos nós temos com relação à praça da cidade, à igreja da cidade, e até mesmo ao cemitério da cidade. Não ouse falar mal destas coisas perto de um de nós!

Com a biblioteca era assim também. Era o orgulho de todos, e, como se não bastasse, a maior parte das pessoas gostava de freqüentá-la. Não havia muitas atrações na cidade: cinema era somente um, onde passavam dois filmes por semana: um para crianças e outro para adultos. Praia não tinha. Por isso, a biblioteca estava sempre cheia. Isso fazia da cidade uma cidade de leitores: todo mundo estava sempre lendo algum livro, e depois as pessoas se reuniam nos bancos da praça, no bar da esquina ou em casa mesmo, e alguém sempre acabava fazendo a pergunta: “que livro você está lendo?”

Bem, mas você deve ter lido o título desta história e, ao chegar até aqui, pode ser que esteja se perguntando: “mas não é uma história de amor?”. Sim, é. Acontece que ela se passa dentro da biblioteca da cidade, por isso achei importante apresentá-la, ainda que de forma rápida. Vamos começar, portanto.

Existia na cidade um senhor chamado Honório. Era um sujeito magro e esguio, tinha cabelos pretos ondulados e ligeiramente desgrenhados, e usava um bigodinho em estilo francês, algo absolutamente fora de moda na cidade e, provavelmente, em qualquer outra parte do mundo. Usava roupas boas, como calças de linho e camisas de abotoar, feitas para ele sob medida pelo alfaiate da cidade. Seus sapatos invariavelmente pretos estavam sempre engraxados. Devia ter algo em torno dos 40 anos, não era casado e trabalhava das seis da manhã ao meio-dia, de segunda a sexta, na agência dos correios da cidade. Quando findava o expediente, Honório almoçava, tirava uma soneca e depois ia passar o restante da tarde na biblioteca.

Honório tinha fascínio pelos livros de arte. Não havia museu na cidade, e Honório nunca tinha viajado para muito longe. Por isso ele nunca tinha visto, ao vivo, uma obra de arte, um quadro que tenha deixado todo mundo de queixo caído, pintado por algum autor que mudou a forma como as pessoas enxergam a realidade. Havia vários artistas assim, e Honório sabia disso por causa daquilo que ele via nos livros da biblioteca. Existiam diversas coleções de livros de arte, catálogos de museus famosos, biografias de artistas de todas as épocas e escolas artísticas possíveis, e Honório se deleitava com aquilo. Eventualmente chegavam livros novos à biblioteca, doados pela família de alguém que faleceu, ou comprados pela prefeitura da cidade. Honório estava sempre perguntando à bibliotecária, uma moça gordinha e sisuda, e também muito atenta e comprometida, chamada Lisa, se haviam adquirido novos livros de arte. Às vezes sim, às vezes não.

Ultimamente, Honório andava lendo, de forma contínua, um bonito livro, de capa dura e em formato grande, contando a vida e mostrando as obras do pintor Magritte. Ele ficara intrigado, como de resto todo mundo fica, com aquele quadro que tem um cachimbo pintado e, embaixo, a inscrição: “isto não é um cachimbo”. O quadro em si – ou melhor, o cachimbo – não tinha nada de mais. Era um cachimbo, pintado com destreza, mas só isso. Não trazia nenhuma atmosfera de magia como nas pinturas de Monet, nenhum mistério escondido num cantinho como nos poucos e importantes quadros do mestre Leonardo, nem a criatividade singela e triste das pinceladas do Van Gogh. O legal do quadro do Magritte, e que deixara Honório atônito e deslumbrado, era o texto: “isto não é um cachimbo”. O autor estava, com aquele quadro, brincando com a arte, questionando-a, e Honório se deixou levar por aquele questionamento. Não pense que foi algo inédito, leitor: Honório já se deixara levar por causa de outros artistas, de Frida Kahlo a Pablo Picasso, de Hieronimus Bosch a Paul Gauguin. Estava acontecendo de novo, e ele iria se debruçar naquele livro por muito tempo ainda. Quem o via sentado à mesa da biblioteca, profundamente concentrado e com o cenho franzido, às vezes enrolando a ponta do bigode, virando a página e depois retornando a ela, logo pensava: “Eis aí um estudioso!”, e havia razão nisso, pois o que Honório estava fazendo era justamente estudar, embora não houvesse um método muito definido, e muito menos um propósito escolar naquilo. Ele queria entender aquela obra e tudo que ela continha: o cachimbo em todos os seus detalhes, o texto, a cabeça do pintor ao pensar na pintura, e para isso Honório fixava o olhar de forma obsessiva naquela página do livro. Estava assim há dias.

Um dia, Honório chegou e, como de hábito, pegou o livro de Magritte na prateleira (que Lisa sempre organizava no horário de almoço e à tarde, depois que a biblioteca fechava) e sentou-se em uma cadeira vaga. Ao abrir o livro na página de sempre, havia ali um pequeno pedaço de papel. Costumava acontecer de alguém marcar o livro em determinada página, para depois retomar a leitura. Mas este papel tinha algo escrito, e Honório não pôde deixar de ler: “Olá! Tudo bem? Fiquei curiosa: por que você lê sempre este livro? E por que sempre esta mesma página?” Honório fechou o papel nas mãos e olhou para os dois lados. A biblioteca estava cheia, como sempre, mas não parecia que alguém o observava. Quer dizer, era difícil afirmar, visto que a biblioteca, como já ficamos sabendo, tem três andares, e todos eles têm mesas e cadeiras para leitura. Ele estava no andar de baixo. Alguém lá em cima poderia estar de olho nele. Isto incomodou Honório. Pelas perguntas no papel, é claro que a pessoa (do sexo feminino, pois ficou “curiosa”) o observava atentamente há dias, pois sabia que ele estava lendo o livro do Magritte.

Honório foi até o balcão, levando juntos o papel e o livro, e se debruçou para falar com a bibliotecária Lisa. Ela não olhou para ele, pois estava ocupada dando baixa em alguns livros que haviam sido devolvidos aquela manhã. Honório falava sempre baixinho, pois era um sujeito tímido – eis aí uma característica dele que eu havia me esquecido de falar, quando fiz sua descrição. Ele falou “Com licença, senhora Lisa...” por duas vezes, até que ela parasse o que estava fazendo e levantasse os olhos para ele. “Senhora Lisa”, ele recomeçou, “você... a senhora... eu... este papel estava dentro do livro que estou lendo, e...” E quando Honório levantou o papel para que ela pudesse vê-lo, ela imediatamente tomou-o das mãos dele, amassou-o e jogou na lixeira ao lado de sua cadeira. “Não é nada. Costumam deixar marcadores dentro dos livros, quando você ver um, pode amassar e jogar fora.” Bem... não deu tempo para mais nada. O papel agora era uma bolinha amassada dentro da lixeira. Honório voltou para a mesa de leitura e continuou a observar o quadro. “Isto não é um cachimbo”.

Mas ele estava muito absorto para prosseguir com suas ponderações a respeito do quadro de Magritte. Uma dúvida se apossou dele: a mulher do bilhete (uma moça? uma senhora? uma menina?) lhe havia feito perguntas – como ele poderia respondê-las, se não sabia sequer quem era ela?

No dia seguinte, após o almoço, foi acometido por uma dor de estômago. Talvez tenha sido culpa do sanduíche de atum e alface que levou para o lanche no trabalho, pensou. Decidiu que o melhor a fazer era ficar em casa. Não foi à biblioteca e dormiu cedo, um sono profundo e sem sonhos.

Quando retornou ao livro de Magritte, um dia depois, havia dois novos bilhetes lá dentro, encartados na mesma página, a do quadro do cachimbo. Em um deles, lia-se: “O Sr. não me respondeu! Por favor, escreva alguma coisa no verso deste mesmo bilhetinho. O que tem de tão especial nesta página deste livro?”. No outro bilhete estava escrito: “Nem mesmo veio à biblioteca ontem! Terá sido por minha causa?”

Que criatura curiosa, pensou Honório. “Ora, mal me conhece e já fica querendo saber detalhes de minha vida, intimidades! Por quê não vim à biblioteca ontem? Isso é falta de respeito!” Ele levantou-se e, mais uma vez munido dos papeis e do livro de Magritte, dirigiu-se à bibliotecária Lisa.

“Senhora Lisa... perdão, eu... Veja só isso, senhora Lisa.”, disse ele de supetão, apontando-lhe os papeis. A bibliotecária Lisa, ocupada como sempre, retirou os óculos do rosto e olhou para Honório. “Não emprestamos livros de arte, como o senhor bem deve saber.”

Honório continuou ali, parado em frente ao balcão. Um jovem passou à sua frente e deu dois livros à bibliotecária, para que ela fizesse as anotações de empréstimo. Pensando bem, a sra. Lisa não prestaria mesmo muita atenção a alguns bilhetinhos endereçados a ele deixados dentro de um livro de arte.

Voltou à mesa. Decidiu que ia responder à bisbilhoteira misteriosa. Tirou sua esferográfica do bolso da camisa e começou: “A sra. é uma pessoa curiosa e enxerida. Me deixe em paz! P.S. Quem é você?”

Pronto! Agora ela certamente aprendera uma lição. Não se deve incomodar alguém que esteja concentrado em uma biblioteca.

Logo que chegou em casa, porém, Honório sentiu um incômodo, uma espécie de angústia, como se alguém lhe estivesse dando um nó por dentro. Deitado na cama, à noite, não conseguia retirar da cabeça a mulher dos bilhetes. Como ela seria? Uma colegial sardenta e de olhões esbugalhados? Ou uma moça obesa, de vestido longo e chapéu florido? Ou, ainda, uma senhora esguia de pele negra e olhos verdes e sedutores? Seria uma pessoa simpática e sorridente? Ou seria ranzinza e de cara amarrada? Ela já teria ido ao correio alguma vez? Estes questionamentos tomaram conta de seu sono: sonhou que ninguém na cidade conversava mais com ele, apenas lhe mandavam bilhetes. Seu chefe, na agência do correio, lhe enviava bilhetes e mais bilhetes, e em cada um estava escrito uma ordem: “faça isso”, faça aquilo”... Então apareceu René Magritte, o próprio, na agência do correio. Honório se levantou de sua cadeira, nervoso, suando, e disse: “Monsieur Magritte... é uma honra! Em que posso lhe ser útil?” Magritte retirou do bolso do paletó um bloco de anotações e começou a rabiscar algo. Assim como o chefe de Honório, ele também não lhe diria nada. Apenas lhe entregaria um bilhete. “Pourquoi avez-vous juste continuer à regarder la même page du livre?”

Então Honório acordou. Estava atrasado.

Não foi um bom dia de trabalho. Confundiu-se algumas vezes, distraiu-se ao atender a senhorita Maura, que desejava enviar um postal ao namorado que está fazendo intercâmbio na Europa. Escreveu um documento a pedido do chefe, mas perdeu-o. Teve de fazer tudo de novo. Quando enfim encerrou o expediente, percebeu-se bastante ansioso, como nunca estivera, para retornar à biblioteca. Nem almoçou, foi direto. A biblioteca ficava a algumas quadras do correio. Honório praticamente correu em direção a ela, a ponto de trombar de frente com um transeunte, um rapaz baixinho que naturalmente esbravejou com ele e o mandou olhar por onde anda.

Entrou. A biblioteca ainda não estava cheia, pois era o horário de almoço. Dali a cerca de uma hora, já não haveria nem lugar para sentar. Não nos esqueçamos, a biblioteca era extremamente frequentada pelos moradores da cidade. Honório se encaminhou – como sempre fizera – para a grande prateleira dos livros de arte. Seus olhos passearam pela enorme coleção de História da Arte, que começava com as pinturas rupestres e terminava nos grafites de rua, prosseguiu pelos livrões gigantes dos autores renascentistas, pela Enciclopédia dos Impressionistas, pelas biografias (Dali, Van Gogh, Modigliani, Picasso, Renoir, Chagall), pelos livros de arte moderna, até que a prateleira chegou repentinamente ao fim. O livro de Magritte não estava ali! Mas como isso era possível? Em todos estes dias, ninguém procurara por este livro, a não ser ele próprio... Honório se virou e começou rapidamente a olhar pelas mesas. Aonde poderia estar o livro? Quem poderia estar lendo-o? Será que ela?...

Enfim encontrou-o nas mãos de um menino de uns doze anos, de óculos fundo de garrafa e cabelo encaracolado. “Ei!”, disse Honório ao menino, com um tom de voz que ele nunca usava. “Preciso ler este livro. Pode me devolvê-lo, por favor?” O menino olhou para Honório meio confuso, talvez assustado. “É que... eu preciso fazer um trabalho sobre esse pintor.” Honório nem ouviu o que o menino tinha a dizer. Agarrou o livro e começou a puxá-lo das mãos do garoto, que, no entanto, segurou firme. “Me dê, garoto. Eu acho um outro livro para você, vamos.” Então uma pessoa se aproximou dos dois. O pai. “Algum problema, filhão?” Honório largou o livro e imediatamente recuou um passo. “Pai, esse moço não quer deixar eu fazer o meu trabalho!” disse o garoto, já ensaiando um choro. O pai franziu o cenho e olhou para Honório com cara de poucos amigos. Honório tentou pedir desculpas, falar que não era nada daquilo, mas sua voz sequer saiu. Ele foi andando para trás até sumir no meio de outras pessoas que passavam por ali. “Droga!”, pensou. Teria de esperar o garoto fazer o trabalho. E se ele encontrasse o bilhete e jogasse fora? Ou, pior e se ele lesse o bilhete? Seria um desrespeito por parte do menino, afinal, o bilhete fora escrito para ele, Honório. Pertencia a ele, e a mais ninguém dentro desta biblioteca.

Foi ficando tarde: já passava das dezoito horas quando o garoto e o seu pai se levantaram, deixando o livro do Magritte sobre a mesa, e foram embora, o menino levando consigo o trabalho, que escrevera todo à mão em folhas soltas de caderno. Honório observava tudo do andar de cima. Durante todo este período, não fizera nada além de vigiar o garoto e seu pai. Poderia até ler algum outro livro de arte enquanto aguardava, mas estava muito tenso para prestar atenção em algo diferente.

Ele desceu as escadas calmamente, para não demonstrar que estava ansioso. A biblioteca, àquela altura, estava vazia. Quando se aproximou do livro, no entanto, a mão da bibliotecária Lisa foi mais rápida que a dele, e pegou o livro para colocá-lo de volta em seu lugar na prateleira. “Com licença, sra. Lisa... Vou consultar este livro, e...” A sra. Lisa, sem olhar para Honório, como era seu hábito, disse: “São dezoito horas e onze minutos, senhor. A biblioteca está fechada. Volte amanhã.” Honório ainda tentou uma última cartada: “Mas... sra. Lisa, preciso apenas olhar dentro do livro, levará um segundo, e...” A bibliotecária foi andando apressada, sem se voltar, em direção às prateleiras. Havia diversos outros livros em suas mãos. “Boa noite, senhor.”

O dia seguinte, vamos direto ao ponto, foi uma verdadeira tortura para Honório. Ele não via a hora de sair do correio e correr até a biblioteca. E foi o que fez. Para seu alívio, desta vez o livro estava lá, na prateleira. Havia um novo bilhete. “Olá! Fiquei muito feliz que, finalmente, o sr. tenha se decidido a conversar comigo. E, ainda que o senhor resista a me responder, eu não tenho problemas em responder vossa pergunta: quem sou eu? Sou alguém como você. Venho à biblioteca todos os dias. Leio muito. E tenho interesse em conhecê-lo, pois o senhor desperta, sim, a minha curiosidade – que mal há nisso?”

Honório ficou observando aquele bilhete por alguns minutos. Depois, observou demoradamente as pessoas ao seu redor. Ela estaria por ali, observando-o? Com certeza. Tirou a caneta do bolso, virou o lado do bilhete e escreveu com decisão. “Não sei por que observo sempre a mesma página deste livro. É este quadro. Desejo compreendê-lo. Pode me ajudar?”

Ao contrário dos dias anteriores, ele saiu satisfeito da biblioteca. Havia invertido os papeis: agora seria ela quem lhe devia explicações. Estranhamente, não estava mais tão curioso com relação às feições da sua interlocutora secreta. Desde que, é claro, ela lhe respondesse no dia seguinte. Pensando bem, ela lhe havia feito um questionamento interessante, do qual ele não tinha respostas prontas. Por que ele observava aquele quadro indefinidamente? Estaria ficando louco? Afinal, será que ela lhe daria mesmo alguma resposta para suas dúvidas?

No dia seguinte, no bilhete dentro do livro estava escrito: “...tome-me por aquilo que manifestamente sou: letras colocadas umas ao lado das outras, com essa disposição e essa forma que facilitam a leitura, asseguram o reconhecimento e se abrem mesmo ao aluno mais balbuciante; não pretendo me arredondar, depois me estirar para tornar-me primeiro o fornilho, depois o tubo de um cachimbo: não sou nada além das palavras que você está lendo. Michel Foucault – ‘O caligrama desfeito’. Está na prateleira 233.”

“Puxa vida”, pensou Honório. Ele guardou o bilhete no bolso da calça e foi atrás do livro indicado. Não se tratava de um livro, mas de um capítulo de um livro desse tal de Michel Foucault. Estava na prateleira de livros de filosofia. O livro se chamava “Isto não é um cachimbo”, e trazia na capa o quadro de Magritte. O capítulo estava marcado por outro bilhete. Desta vez, o texto do bilhete, escrito com a mesma caligrafia feminina de sempre, formava um desenho – o desenho de um cachimbo. “Leia e me alimente. Traga-me sabedoria, e mais dúvidas. Alimente-me com suas dúvidas. Adoro-as.”

Honório estremeceu. Que tipo de bilhete seria aquele último? Ficou assustado e, ao mesmo tempo, excitou-se. Sua “amiga” queria, evidentemente, prosseguir com aquele jogo, do qual ele também estava gostando. Porém, para continuar, e principalmente para compreender em sua plenitude e profundidade aquele último bilhete, ele teria de ler o tal livro por ela indicado.

Bem, ele era um leitor. Se, na biblioteca, lia apenas livros de arte, pela manhã, no correio, lia os jornais de maneira regular. Não seria um problema ler rapidamente o livro e, quem sabe, decifrar, enfim, a enigmática obra-prima de Magritte. Afinal, era esta a sua obsessão nos últimos dias.

O livro podia ser emprestado. Assim sendo, a bibliotecária Lisa conferiu a assinatura e o documento de identidade de Honório, bateu o carimbo, disse a ele que o livro deveria ser entregue em uma semana, e Honório levou-o para casa. Claro que entregaria antes: afinal ele seria lido naquela noite mesmo.

Assim, Honório leu o capítulo 2 de “Isto não é um cachimbo”, do escritor e filósofo francês Michel Foucault. Tal capítulo era denominado “O caligrama desfeito”, e Honório descobriu, lendo, o que significava a palavra “caligrama”. E descobriu outras coisas, embora não tenha tido certeza absoluta se, enfim, desvendara o mistério do quadro. Na verdade, não compreendera quase nada daquele pequeno livro. Mas isso não era mais importante.

No dia seguinte, não havia bilhete algum dentro do livro de Magritte, e ele compreendeu que era a sua vez de escrever. Assim o fez. “Estou eternamente agradecido. A sra. me fez mesmo muito bem, e isso foi um ato profundamente tocante da sua parte. Estou folheando este livro, penso, pela penúltima vez. Despedimo-nos aqui? Deixo à sra. o privilégio da escolha.”

Mais um dia se passou, e lá estava a resposta: “Por onde quer que passeies dentro desta biblioteca, não importa qual livro folheies, não importa em qual andar estejas, estarei contigo.” Honório, então, procurou algum novo livro para ler na estante de livros de arte. Como não encontrara nada interessante, passou à prateleira dos romances. O Dom Quixote, de Cervantes. Eis uma leitura interessante para passar o restante da tarde. Ele, que não tinha hábito de ler a não ser livros de arte, leu cerca de cem páginas do Dom Quixote, até que fosse hora de fechar. Quando percebeu que a bibliotecária Lisa corria pelas mesas, recolhendo os livros e guardando-os novamente nas respectivas prateleiras, Honório retirou do bolso um pedaço de papel, escreveu algo nele, que não ficaremos sabendo o que foi, encartou no volume, que foi deixado sobre a mesa, e se retirou.

E no dia seguinte, dentro do Dom Quixote, lá estava a resposta ao bilhete. Honório leu-a, sorriu e respondeu-a. E assim foi: quando um escrevia, o outro respondia um dia depois. Era uma conversa unilateral, lenta, como se cada um estivesse em um ponto distante do universo e a mensagem demorasse a chegar porque devesse atravessar milhões e milhões de quilômetros. E, no entanto, estavam próximos um do outro – quem sabe um ao lado do outro. Mas Honório não se importava mais com isso. Ele sabia, estava sendo observado – afinal, como é que ela poderia saber em qual livro procurar o bilhete? Mas ele não queria saber quem era a sua interlocutora, se contentava com aquilo, e ainda por cima agradava-lhe que a iniciativa partisse sempre dele, ou seja, se quisessem mudar de livro, era sempre ele quem o fazia. Primeiro foi o Dom Quixote, e quando Honório o leu inteiro, simplesmente pegou outro livro, e a comunicação via bilhetinhos sequer foi interrompida.

Eu não sei se eles conversavam sobre os livros que Honório lia ou sobre outros assuntos. Tudo o que posso afirmar é que, se no início, se dirigiam um ao outro por “senhor” e “senhora”, o tempo fez com que começassem a se tratar em modo cada vez mais íntimo: primeiro, por “você”, depois por adjetivos como “minha cara”, “meu querido”, até que por fim os bilhetes traziam amenidades como “fiquei com saudades de você, meu amor”.

Os anos se passaram. Vez ou outra, um bilhete deixava de ser respondido no dia seguinte, porque ou ele ou ela deixavam de ir à biblioteca, por um motivo qualquer. Mas isso tampouco o deixava preocupado. Honório sabia que, no dia seguinte, lá estaria o bilhetinho, esperando-o. Não havia mais como cortar aquela comunicação, a não ser que um dos dois assim desejasse.

E será que isso ocorreu, algum dia?

Consta que, certo dia, após ponderar bastante, ela resolveu se mostrar a Honório, em carne e osso. Claro, não seria algo assim, repentino: “oi, cheguei!” Deveriam conversar muito antes, pois essa era uma decisão importante na vida de ambos. E, como sabemos, a comunicação entre eles era bem lenta. Honório se recusou terminantemente a vê-la. Foi irredutível até o fim. Ela se mostrou magoada, pois queria que conversassem mais abertamente, ela queria compartilhar as emoções que os dois sentiam, um próximo ao outro, e não mais por meio de bilhetes, que ela agora estava considerando frios e sem graça. Um dia, ela escreveu: “amanhã, quer você queira quer não, eu me mostrarei a você.” Na verdade, ela poderia ter se mostrado sem aviso, mas, em sinal de respeito, decidiu dizer antes de fazê-lo. Foi um erro.

Porque Honório não apareceu mais na biblioteca. Nunca mais. E, como soubesse que ela poderia procurá-lo em seu trabalho, pediu repentina demissão, após não sei quantos anos de serviços fielmente prestados ao correio. O seu chefe disse a ele que o acerto de contas seria dali a uma semana. Honório pediu ao chefe que depositasse em seu nome, pois ele o retiraria em outro lugar, não mais naquela cidade. Chegou em casa, arrumou suas malas, reuniu suas economias em uma sacolinha e partiu, rumo à estação de trem da cidade. Tomou o rumo da capital, e a partir daí não temos mais notícias dele, e nem muito menos de seu primeiro e único amor.

domingo, 19 de maio de 2013

Certa tarde de verão no Hemisfério Sul


Faz sol.


O céu é de um azul intenso e brilhante, homogêneo e plástico, como se fosse a única tonalidade possível dentro da infinita paleta de cores da natureza. Para qualquer lado que se olhe, não há vestígio de nuvens.

O local se assemelha a uma praça. Quer dizer, é bem certo que deve ter sido uma praça, algum tempo atrás. Poucos bancos de ferro, ou de qualquer metal que se assemelhe a ferro, sobrevivem, ainda que com seqüelas, mas a maior parte do terreno é feita de escombros. Pedras, terra. Pedras de todos os tamanhos, aparentemente modeladas pelo homem em mais uma das suas complexas construções que foram destruídas nalgum evento distante e esquecido. Terra cinza. Pó. Pedaços do que parece ter sido uma estátua. Metal retorcido e queimado se espalha ao longo da planície.

Um dos bancos está situado precisamente no centro do terreno, embora seja impreciso afirmar onde é o centro disso tudo. No banco, estão sentados dois senhores. Eles são, certamente, bem vestidos: o primeiro traja um elegante casaco verde, ornado com impressionantes botões madrepérola que fazem faiscar a luz do sol. Sua calça é azul marinho, de um material próximo ao linho. Poderíamos chamar sua roupa de roupa de marinheiro. A camisa, branca e abotoada até o pescoço, está enfiada dentro da calça. Os sapatos são pretos, de bico fino: eles brilham. O segundo senhor, fisicamente, se parece muito com o primeiro. Não dá para saber qual dos dois é o mais velho. A principal diferença talvez esteja em seu bigode, branco e escovado. O outro tem o rosto liso, como se tivesse acabado de se barbear. O terno desse é preto, de risca de giz cinza. Seus sapatos também são pretos e engraxados. Os cabelos extremamente brancos de ambos, ralos e escorridos pela testa, também refletem os raios solares. Dir-se-ia que os dois competem num concurso de impecabilidade.

O silêncio é quebrado pelo primeiro. Olhando para a frente, com os braços cruzados, ele diz:

- Parece que agora acabou mesmo, certo?

- Penso que sim. Hamsa cuidou dele até o limite, mas ele não resistiu. Morreu. Tive pena, sobreviveu muito mais tempo do que deveria. Era o último. Agora chega de sofrimento.

- Hamsa se foi?

- Sim. Ele disse que o faria. Cumpriu o que falou. Partiu tão logo soube, hoje de manhã. Você ainda dormia.

- Bom, é o fim, portanto.

- Para eles, sem dúvida. Mas eu e você – e Hamsa – estamos por aqui. Não acabou ainda.

- Sob esta perspectiva, não vai acabar nunca.

O velho olhou para o céu, como se observasse o sol, e disse:

- Nada é para sempre, meu velho. Há coisas que duram muito tempo, e parecem eternas, mas também elas têm um final. – E completou, abaixando a voz: - Pelo menos, assim espero.

- Eu também.

Os dois permaneceram um pequeno período – dois ou três minutos – em novo e profundo silêncio, ambos evitando olhar um ao outro. Ao longe, pequenas e tímidas nuvens esbranquiçadas começam a se formar lentamente. O sol subiu mais, e agora castiga de maneira impiedosa. Nenhum dos dois parece se perturbar com isso, apesar dos ternos, das calças e das camisas abotoadas.

O primeiro decide recomeçar o diálogo.

- Que língua falamos?

- Não sei. Para que você quer saber isso?

- Curiosidade. Conversamos por tanto tempo com aquele moribundo, até ontem ele ainda balbuciava qualquer coisa sem sentido, e eu nem sei em que língua falávamos. Aliás, há muito não conversávamos tanto.

- Quanto tempo será que durou?

- O quê?...

- A humanidade. Quanto tempo terá levado desde que o primeiro homem nasceu até ontem?

- Hm. Não faço ideia. Não sei nem ao menos quantos anos eu tenho.

- Eu também não. Eu tinha setecentos e alguma coisa quando decidi que ia hibernar nas grutas do Hudson. Quando saí de lá eu estava ressaqueado, sem saber se tinha dormido um ano ou um século. Desde então parei de contar a minha idade. Devo ter uns três mil anos. Talvez mais.

- Hamsa diz que tem dezessete mil anos.

- Duvido. Hamsa está numa fase em que fala um pouco demais. Carência afetiva. Acomete a todos nós, ocasionalmente.

Novamente eles se calam, desta vez por cerca de dez minutos. Agora quem fala é o segundo senhor. O do terno de risca de giz.

- Sabe, pensando bem, é um tanto frustrante esta situação. A humanidade viveu muito menos tempo do que imaginou viver. Não sei, uns 170, 200 mil anos desde que o homem adotou atitudes que o distinguiram dos outros animais. Isso não é nada. Os estúpidos répteis duraram mil vezes mais que isso. Se Hamsa falar a verdade, ele acompanhou um décimo, ou quase isso, de toda a história dos humanos.

- Você já pensou que poderíamos ter tomado algumas atitudes em prol da reversão da extinção da humanidade? Eu, você, Hamsa e os outros que estão espalhados aí pelo mundo? Nós poderíamos ter feito isso.

- Vocês, talvez. Eu não sou tão antigo assim. Não acumulei sabedoria suficiente para desviar a Grande Escala da História Humana. Derrubei uns prefeitos aqui e ali, fiz de alguns filhos e netos pessoas famosas, mas isso foi tudo.

- Bom, acho que um desvio tão grande jamais foi tentado, portanto nenhum de nós, em tese, estava preparado. Talvez fosse um esforço para ser realizado em conjunto. Mas, bom, confesso que não previ essa queda tão rápida e repentina. Você previu?

- Eu não.

- A humanidade conseguiu surpreender até o fim.

- É.

- E agora? O que faremos?

- Não sei. Talvez andar por aí. Eu estou ficando com fome: que tal procurar alguma coisa para comer?

- Podemos pensar nisto. Deixe-me meditar um pouco agora.



Ambos fecham os olhos. Ao que parece, nenhum dos dois velhos voltará a dizer algo tão cedo.

O grande sol amarelo brilha alto no céu, com a mesma imponência de há centenas de milhões de anos. Seus raios reverberam no chão seco e duro, gerando ondas de calor por onde quer que se observe, iluminando implacavelmente toda esta parte do planeta.

Talvez caia uma tempestade, à noite.