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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Aspectos sobre os quadrinhos do Mauricio de Sousa

Imagem retirada da internet



A personagem de história em quadrinhos Mônica está completando 50 anos. Mauricio de Sousa, seu criador, e sua filha Mônica, que inspirou a personagem, anunciaram, ontem, alguns produtos e eventos comemorativos para marcar a importante data. 

Mônica é, sem dúvida, a HQ há mais tempo em atividade no Brasil, e provavelmente uma das mais antigas do mundo. E é inegável também o seu sucesso comercial e, sobretudo, a sua popularidade junto ao público leitor no Brasil: prova disso é sua própria longevidade. Mas não só: Mônica e sua turma são conhecidas e amadas em todo o Brasil e por todas as gerações de leitores – dos adultos que leram suas revistas na infância às crianças e jovens que acompanham as publicações nos dias de hoje. Em minhas aulas e oficinas de quadrinhos, que ministro há dezessete anos, não encontrei, até hoje, alguém que não conhecesse a Turma da Mônica. Nem mesmo entre crianças menores de cinco anos, ainda não alfabetizadas. Trata-se, evidentemente, de um fenômeno cultural, talvez sem igual na história do Brasil. 

Como toda figura pública, Mauricio de Sousa gera controvérsias. À parte o fato de que é um profissional muito respeitado e querido, há, também, os que o consideram muito mais um empresário de visão do que propriamente um criador, um quadrinista. As revistas em quadrinhos, matéria-prima de seu sucesso, seriam, nesta concepção, apenas parte de seu intrincado empreendimento. 

É fato que ele já não cria regularmente histórias em quadrinhos há décadas, salvo exceções como o personagem Horácio, que ele fazia questão de roteirizar até bem pouco tempo atrás (não sei se ainda o faz). Mas não é verdade que Mauricio seja “apenas” um empresário, tendo abandonado sua verve criativa, deixando-a displicentemente nas mãos de seu famoso estúdio de produção artística. Mauricio acompanha o trabalho de sua equipe de forma crítica e rigorosa, preocupa-se com resultados, dá sugestões, além de, evidentemente, tomar parte de forma ativa nos novos projetos de quadrinhos, que a partir de 2007, sofreram verdadeira guinada, abarcando novos formatos, públicos diferenciados e mudanças de estilo jamais experimentadas. Por isso, não questiono e tampouco tenho dúvidas acerca da participação do Mauricio de Sousa no dia-a-dia criativo da Turma da Mônica. Conjugar esta participação à sua atuação como empresário é apenas mais um fator que o coloca como uma das figuras mais interessantes e bem-sucedidas de nossa cultura. Além de criador, é um profissional focado e comercialmente agressivo. Razões que fizeram a diferença. 

O que é verdade é que Mauricio encontrou, décadas atrás, a fórmula do sucesso em quadrinhos, baseada em uma série de pequenas regras – surgidas conscienciosamente ou não – que são seguidas à risca por seus colaboradores. O traço excessivamente simples e desprovido de maiores detalhes, como sombras e hachuras, as histórias igualmente simplórias e ingênuas, a composição das páginas em grades de quatro faixas de quadros, de forma a facilitar e agilizar a leitura, bem como o texto escrito nos balões, que não deve ultrapassar as três linhas, o padrão de cores quentes e atraentes, são todas marcas registradas das histórias da turma da Mônica desde a década de 1970. Mais do que marcas registradas, tais características formam um padrão, uma linha de montagem, da qual Mauricio não abre mão, ao menos em suas revistas regulares da série tradicional. 

Outra coisa que considero marca indelével da obra do Maurício é o seu posicionamento apolítico. As histórias em quadrinhos da Mônica são, em geral, desprovidas de crítica ou de posicionamentos que possam, eventualmente, provocar polêmica. Não vemos o Chico Bento, por exemplo, tecer uma opinião favorável – ou contrária – à reforma agrária, assim como não temos uma história onde o Papa-capim traz à tona questões acerca do tamanho das reservas indígenas em terras de garimpo. O que se traz são questões prontas, resolvidas e ingenuamente unânimes: os índios são gente boa e devem ser protegidos, a população rural é dócil e trabalhadora. Mauricio fica em cima do muro, aguardando a maré. Talvez por isso, ele só navegue em águas seguras, quer dizer, seus projetos são quase sempre fadados ao sucesso. 

Certa vez, em uma entrevista à revista Cult, Mauricio, ao responder sobre um personagem supostamente gay que saiu na revista da Tina, primeiro disse que tal personagem não havia sido criado por ele. “Foi meu roteirista”, se eximiu. Depois, afirmou que jamais colocaria suas opiniões pessoais nas revistas em quadrinhos. Esta e outras afirmações, vistas em outras entrevistas (como a que ele deu para o Dráuzio Varella, uma das mais completas), acabam denunciando uma impessoalidade no mínimo estranha para um criador do que quer que seja. 

Aliás, em suas entrevistas, sinto sempre um grande cuidado com aquilo que será dito, uma preocupação em descrever de forma correta os diversos empreendimentos e projetos de sua franquia, além de uma repetição monótona de ideias e opiniões, como quando afirma ser Will Eisner uma de suas principais influências nos quadrinhos. Não consigo entender porque ele nunca citou o óbvio – a influência direta do personagem Bolinha na criação do seu primeiro personagem, Franjinha, e do universo dos Peanuts, de Charlie Schulz, no universo da Turma da Mônica. Temeria ser acusado de plágio? 

Portanto, o que, para mim, é o mais relevante, artisticamente falando, neste momento em que se comemora o cinqüentenário da mais importante criação de Maurício de Sousa, são estas características – sua impessoalidade crítica e a formatação de uma linha de montagem que busca a simplificação, tanto do modo de fazer quanto do modo de ler. São características que buscam, a rigor, a mesma coisa: planificar e fazer crescer a quantidade de público. Ao enquadrar seus personagens, a estrutura e o ritmo das histórias e as próprias tramas em si, em um padrão de uniformidade mais rigoroso do que as histórias da Disney, por exemplo (que sempre apresentaram certa diversidade), e ao manter distância de quaisquer assuntos ditos “reais”, e que poderiam posicionar política e socialmente a Mônica e sua turma, Maurício encontrou seu porto seguro histórico, que o mantém pairando em uma esfera à parte dentro da produção cultural brasileira. Mais ou menos como fazem Roberto Carlos, na música, ou os autores das telenovelas da Globo. Em comum, todos perseguem um grande e diversificado público, e para isso precisam “pasteurizar” seus conteúdos, negando, assim, a transformação por meio da expressão artística, que gera controvérsias, agrada uns e revolta outros, o que não será comercialmente interessante. 

No caso de Maurício de Sousa, isso acaba fazendo com que sua obra seja eventualmente denunciada como algo de muito valor comercial e pouco valor artístico. E, neste caso, a crítica é justa. Contestável, por outro lado, é a justificativa que ouço/leio com freqüência – a Turma da Mônica pode até não ser veículo de grande expressão criativa, mas incentiva o hábito da leitura. Trata-se, neste caso, de uma interpretação excessivamente passiva do problema. Como se fosse dito nas entrelinhas: “É ruim, mas já que todo mundo lê, é bom.” Ou, ainda, como se a Turma da Mônica fosse a única alternativa de leitura infantil passível de popularidade. Como se não tivéssemos à nossa disposição os quadrinhos de Charlie Brown, Calvin e Haroldo, Luluzinha (a original, pois de teen já basta a própria Mônica) e, claro, o Pererê do Ziraldo. Todos eles, aliás, além de populares, trazem muito mais densidade, muito mais volume, do que os quadrinhos de Mauricio. Sem contar que nenhum deles se esconde atrás de uma acriticidade que esteriliza e homogeniza a obra, como é o caso dos quadrinhos da Mônica. 

Ao contrário do que este texto possa deixar transparecer, porém, não considero a adoção de tal linha de pensamento, em si, condenável. Mauricio de Sousa fez uma escolha, e esta não deixa de ser uma escolha artística. Ele inseriu seu trabalho dentro de um contexto industrial, capitalista, e foi bem-sucedido. Não é fácil construir o que ele construiu, de maneira determinada e objetiva, e, sobretudo, com tamanha popularidade e inserção. Hoje, Mauricio pode até dar-se ao luxo de escapar deste esquema, como vem fazendo com seus álbuns autorais e coleções comemorativas – o que, aliás, contribui muito mais para a sua imagem do que propriamente para seu patrimônio, e mesmo esta é uma decisão correta, já que introduz Mauricio até no pequeno e incipiente mercado de quadrinhos autorais. 

Para ser sincero, me incomodo mais com o que se fala acerca da obra do Mauricio de Sousa do que propriamente com a obra, que, como eu já disse, é pautada em uma escolha artística. A crítica brasileira, sobretudo a crítica específica de quadrinhos, é um tanto condescendente, não somente com Maurício, mas com praticamente tudo o que se produz no mercado de HQ nacional. 

Digo isso porque percebo, desde sempre, uma grande dose de “relaxamento crítico” quando se escreve sobre os quadrinhos do Maurício, como se o grande legado e a inacreditável popularidade do autor e de seus personagens tornassem suas histórias em quadrinhos isentas de um olhar mais criterioso por parte de quem escreve. A impressão que fica é a de que Mauricio de Sousa ocupa um lugar tão importante que torna-se quase um tabu tecer críticas à sua obra. Penso que deveria ser exatamente o contrário – é justamente o seu status e a sua posição de destaque não só dentro do cenário dos quadrinhos, mas da própria identidade nacional, que deveriam fazer da obra de Mauricio objeto de crítica, tanto geral – em obras acadêmicas, por exemplo – quanto pontualmente, na forma de resenhas de suas revistas. 

Continua...