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segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O SUPER-HERÓI COMO FATOR DE MOBILIZAÇÃO EM “BATMAN”

O texto abaixo é um trabalho acadêmico, realizado por mim em junho de 2013. Foi apresentado na 3ª Semana UMG - Saberes em Diálogo. Eu suprimi a última parte (Conclusão), por entender que ela interessaria estritamente àqueles que estavam cursando meu curso (Gestão para organizações do Terceiro Setor). Se algum maluco quiser ler integralmente, pode me pedir que envio o restante...


O SUPER-HERÓI COMO FATOR DE MOBILIZAÇÃO EM “BATMAN”


1) Introdução

Este trabalho objetiva analisar uma suposta relação entre os ideais presentes na figura simbólica do super-heroi e os processos e mecanismos de mobilização de grupo observados em trabalhos de autores como MOSCOVICI e HERSEY e BLANCHARD. Através da análise do filme norte-americano “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”, lançado em 2012, discutiremos a possibilidade de se motivar à mobilização através de ideais, e, mais ainda, discutiremos a metodologia de mobilização aplicada a uma ética de grupo. Num momento em que muito se conversa sobre questões de cunho político e polêmico – por exemplo, o aumento do estado de coerção, por meio da redução da maioridade penal e/ou da legalização da pena de morte – cabe a reflexão sobre os caminhos éticos, políticos, estéticos, pelos quais pode vir uma mobilização, seja ela de um grupo pequeno, dentro de um ambiente institucional, seja aquela que se transforma em corrente social. Em Batman – como em outras obras que envolvem super-heróis, como na graphic novel Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons – há uma visão de mobilização pautada em relações de sobrevivência, aonde afloram e se desenvolvem sentimentos extremos de justiça e vingança. Aplicadas ao nosso campo e, sobretudo, à nossa realidade, a das políticas públicas de cunho social, essas ideias podem apresentar soluções interessantes de mobilização ampliando nosso campo de visão e atuação.
Para desenvolver esta análise, observaremos, primeiro, a forma como os super-heróis surgiram nas histórias em quadrinhos norte-americanas, espalhando-se pelo mundo e alcançando enorme sucesso. A seguir, faremos breve análise do filme “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”, para, então, tecermos uma conclusão acerca dos conceitos e mecanismos de mobilização e liderança contidos no filme e suas relações com o mundo real.



2) O super-heroi: origem e mito

O super-herói – seja o dos quadrinhos, seja o do cinema, seja o dos games – é, no imaginário ocidental moderno, uma figura de ampla representatividade e influência. O super-herói é a extrapolação do herói, não só por causa dos superpoderes, mas especialmente por causa das “supervirtudes” presentes nesse tipo de personagem.
O primeiro super-herói da história foi o Superman, criado em 1938, nos Estados Unidos, por uma dupla de artistas judeus – Jerry Siegel (textos) e Joe Shuster (desenhos). O imediato e imenso sucesso desta criação fez com que, imediatamente, surgissem inúmeros outros “super-heróis” nos quadrinhos americanos, como o próprio Batman, criado em 1939 por Bob Kane, e dando origem ao que conhecemos, hoje, como um subgênero literário: as histórias de super-herói.
Apesar de ser considerado uma versão atualizada dos heróis gregos como Ulisses, o super-herói dos quadrinhos, conceitualmente, é um desdobramento de um tipo de herói moderno, originário dos folhetins e das novelas de aventura surgidos a partir da segunda metade do século XIX, como “Os três mosqueteiros” e “Ivanhoé”, embutido de valores anglo-saxões – a vitória por mérito, o triunfo do bem contra o mal etc. Este conceito se afasta - um pouco - da definição de Joseph Campbell, do herói que invariavelmente cumpre sua jornada cíclica para, depois, retornar ao ponto de partida como um herói transformado. O super-herói, ao menos no ato de sua criação, é bem mais elementar: ele combate o mal.
Para além do mero entretenimento, os heróis dos quadrinhos à época do surgimento do Superman eram, também, reflexo ideológico do anseio social norte-americano por uma levantada na sua auto-estima e pela reafirmação de sua identidade cultural e econômica, abaladas pelo “crack” da bolsa em 1929. Por causa da popularidade e inserção social dos quadrinhos, que saíam nos jornais diários ou em revistas de amplas tiragens, os super-heróis podiam adquirir, por fim, funções políticas: o desenvolvimento do super-herói das histórias em quadrinhos coincidiu com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Personagens como o “Capitão América” apareceram neste rastro, propagandeando e justificando a supremacia bélica e política americana. Assim, o super-herói extrapolou seu simplista conceito inicial, de defensor do bem perante o mal, tornando-se a representação simbólica do país aonde foi criado.
Comercial e ideologicamente, os super-heróis não somente resistiram ao tempo, como ganharam força, tornando-se marcas valiosíssimas, invadindo o cinema, a literatura, os videogames e toda a indústria de consumo.
Até meados da década de 1980, e apesar de evidente evolução narrativa ao longo deste tempo, foi mantida esta premissa básica nas histórias de super-heróis: a luta do bem contra o mal. A representação de um justiceiro empenhado em usar sua força sobre-humana para defender a sociedade. A história de super-heróis, neste contexto, é a manifestação gráfico-literária para um anseio, ou para um ideal de justiça coercitiva e maniqueísta, bem próprio do liberalismo norte-americano, aonde o bem se traduz em um conjunto de valores e virtudes que, se for o caso, devem ser impostos à força, e se contrapõe ao mal que é inato e se manifesta como uma força individualizada, e não como um resultado de situações e forças políticas e sociais. O “vilão”, para usar um termo próprio a este gênero de quadrinhos, é um ser aparentemente sem outras motivações para fazer o mal, a não ser o desejo e a vocação para tal. Nesse hipotético e simplista universo ficcional, não há, evidentemente, contextualização histórica, nem, tampouco, reações complexas de causa e efeito: as ações humanas são resultantes de si próprias. As noções de cidadania, direitos humanos ou justiça social são conceitos sem sentido dentro deste mundo. Não cabe, por exemplo, um super-herói discutindo políticas públicas com a sociedade civil, visando uma redução da criminalidade e uma conseqüente diminuição das pancadas que ele próprio distribui.
Embora esta ainda seja, em essência, a forma como este gênero de ficção narrativa se apresenta, a década de 1980 apresentou histórias em quadrinhos que trouxeram reflexões importantes acerca do tema. As principais são “V de Vingança” e “Watchmen”, escritas pelo britânico Alan Moore, e “Batman – O cavaleiro das trevas”, do americano Frank Miller. Esta última – publicada na forma de minissérie em 04 partes – é, aliás, a primeira a trazer um personagem-ícone dos quadrinhos de super-heróis dentro de uma temática adulta, para um público mais maduro. E não somente isso: “O cavaleiro das trevas” trouxe o super-herói a um mundo real, palpável e plausível, que refletiu as situações e o contexto histórico e político da época em que a obra foi escrita. Frank Miller retirou o personagem Batman do lugar simbólico em que ele se encontrava – o de um garoto que, ao ver seus pais sendo assassinados, resolve lutar contra o crime vestido de morcego – e colocou-o em outro âmbito, o de uma figura psicologicamente perturbada, repleta de incoerências e manias. Além disso, o autor põe outra questão moral: uma pessoa que se mascara e sai às ruas para fazer justiça com as próprias mãos não seria, afinal, um criminoso?
A visão dada por Frank Miller (e também por Alan Moore) aos super-heróis alavancou um novo nicho mercadológico dentro deste próprio segmento: o super-herói “adulto”, com aprofundamento da linguagem, questionamentos acerca da identidade e do caráter dos personagens e, especialmente, uma contextualização plausível, ou seja, a inserção dos personagens dentro do nosso universo.
Embora ainda existam histórias de super-heróis seguindo o roteiro original, simples e sem conflitos plausíveis, é a abordagem “adulta” aquela que mais interessa aos leitores maduros. Foi, também, esta a abordagem escolhida para a mais recente série de filmes cinematográficos do Batman, a partir de 2004.


3) Batman, o filme – uma análise

Em princípio, “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”, terceiro e último filme da série escrita e dirigida por Cristopher Nolan, é mais um típico filme de super-heróis, que insiste na velha dicotomia maniqueísta entre o herói e o vilão, bem como na luta entre o bem e o mal.
Dos filmes-franquia de super-herói, tão em voga desde o princípio dos anos 2000, “Batman” (e aqui incluímos também os dois filmes que antecederam este que estamos discutindo) é o mais plausível, na medida em que se busca, sempre, trazer verossimilhança ao fato, a princípio improvável, de um milionário resolver se travestir de morcego e se equipar belicamente para fazer justiça com as próprias mãos. Várias de suas premissas, além de diversos elementos de seu roteiro, aliás, foram baseados na obra de Frank Miller.
É precisamente aí que reside o problema: ao se colocar num degrau de seriedade crítica acima dos demais filmes do gênero, este “Batman” carrega, obrigatoriamente, questões morais mais profundas e pertinentes.
A implausibilidade de outros filmes do gênero – como “X-men”, por exemplo, aonde temos humanos geneticamente alterados das mais diversas e aleatórias maneiras – insere este tipo de cinema em um lugar ingênuo e de fantasia pura e aceitável, que não permite que façamos uma análise mais criteriosa de seus conceitos. O filme de Nolan, ao contrário, nos obriga a isso. Ao colocar em discussão questões relativas ao uso da violência para imposição da ordem, ou às novas formas de criminalidade, Batman “dá a cara a tapa” e nos impele a confrontá-lo com nossa realidade.
Para discutirmos o filme sob a ótica estrita da mobilização e da liderança, devemos fazer um recorte no roteiro, que é repleto de histórias e questões paralelas.
Basicamente, trata-se do seguinte: Batman está aposentado há oito anos. Desde então, a fictícia cidade de Gotham City (desde sempre, e agora mais do que nunca, uma clara alusão a Nova Iorque) convive com uma rigorosa lei contra bandidos, instaurada exatamente no momento em que o vigilante se retirou. Esta lei, por seu rigor e poder de coerção, impede que surjam novos focos de criminalidade na cidade.
É neste momento que um novo vilão aparece em Gotham City. Mais do que um novo rosto, Bane é um vilão diferente, que tem objetivos e estratégias precisos: ele deseja mudar o mundo para melhor. Para realizar este intento, entretanto, seu métodos não são dos mais virtuosos. Ele invade a bolsa de valores, explode bombas e instaura um estado de sítio na cidade. O que nos interessa, aqui, é que Bane não é um criminoso como tantos outros que vemos nos filmes e nas histórias em quadrinhos. Como dissemos, ele tem ideais e objetivos, que extrapolam o simples roubo ou o assassinato. A dinâmica de suas ações, suas estratégias e, especialmente, seu discurso, pressupõem um Estado falho, uma sociedade com problemas e vícios. Bane propõe, como solução única, um recomeço, uma revolução, mesmo que a custo de muita violência.
É, assim, a falta de comprometimento do Estado, apontada e denunciada pelo vilão do filme, o fator gerador da mobilização em torno de seus ideais. Bane assume, ainda que de forma tortuosa, o papel de líder clássico, o líder taylorista, único a conhecer os caminhos para se alcançar os objetivos – ainda que por ele mesmo propostos e defendidos.
Visto sob outra ótica, este vilão é o que denominamos, nos dias de hoje, um terrorista, que desconstrói os pilares do Estado por meio de vandalismo, violência e morte. Eis aí o pior dos vilões, pois ele torna-se um líder, arregimenta pessoas em torno de si e faz com que os outros se convençam de que sua causa é legítima.
Para coibir a evolução deste vilão, Batman sai de seu retiro e reaparece.
O personagem Batman sempre carregou, de forma muito clara, a imagem do super-herói com ideais. Nesta trilogia cinematográfica, as questões relativas a estes ideais estão muito presentes.
Bruce Wayne, a figura por trás da máscara de Batman, é um milionário, talvez o sujeito mais rico da cidade, e escolheu trilhar o caminho da “justiça com as próprias mãos”, de forma a garantir a segurança pública em Gotham City. Apesar de manter uma relação cordial com a Lei (embora neste último filme ele seja um foragido), Batman existe porque a Lei não dá conta do crime. Essa é uma premissa básica de todos os super-heróis, desde seu surgimento: preencher uma lacuna do Estado, relativa à escalada da violência.
Esta postura – a de alguém que, não satisfeito com a forma como o Estado lida com a violência, resolve agir por conta própria – é apoiada e festejada por muita gente, tanto dentro do universo de Batman (os cidadãos de Gotham City, o comissário de polícia) quanto fora (os leitores e telespectadores de Batman).
Batman também é, à sua maneira, um mobilizador, na medida em que tem milhões de seguidores em todo o mundo, que o acompanham e torcem por ele em sua luta contra criminosos como o Bane.
Assim, podemos colocar a imagem de Batman em uma posição paralela – e não oposta – à do vilão Bane. Ambos têm um comprometimento com suas causas. Ambos enxergaram falhas no sistema e resolveram corrigi-las. E, mais importante, as causas de ambos são fatores de mobilização, uma vez que as pessoas que os acompanham acreditam nessas causas e endossam-nas.
O conceito de um vilão idealista não é novo nos quadrinhos e, em especial, nas histórias do Batman, mas o cinema de entretenimento, ao passar a explorar esta ideia, populariza-a. Nos últimos anos, não foi somente este filme a fazê-lo: “Watchmen” e “V de Vingança”, ambos saídos de quadrinhos escritos pelo britânico Alan Moore, também utilizaram a figura do vilão contestador, que justifica seus atos em razão das falhas sociais. Trazendo o conceito ao nosso mundo e ao nosso cotidiano, podemos nos colocar no lugar de Bane em diversos momentos, mais ou menos complexos: quando ficamos parados no engarrafamento, por exemplo, ocorre uma situação de crise e insatisfação com o sistema. Bastaria, então, a voz articulada e coordenada de um “líder” para agregar forças e gerar a mobilização. Esse líder, esse “Bane” do dia-a-dia, não justifica, por si, a mobilização pelo uso da força. Mas traz à tona o fato de que se faz presente o desejo social em resolver as coisas não pela execução da lei – ou pela mudança constitucional desta – e sim pelo uso da força e pelo “justiciamento”. O que, aliás, é a mesma forma utilizada pelo Batman e pelos demais super-heróis.
Exemplos para isso tornam-se patentes tanto nas recentes manifestações populares vistas em todo o país – que, por mais que a mídia tente “domá-las”, chamando-as, de forma insistente, de manifestos “pacíficos apesar de alguns vândalos”, são, sim, revoltas populares, com predisposição para o rompimento violento de regras – quanto em ideias e comentários frequentes, como “bandido bom é bandido morto”, ou em movimentos favoráveis à redução da maioridade penal sob a justificativa de que existem menores de dezoito anos que “já são bandidos”. Estas expressões, muito comuns especialmente após a explosão das redes sociais, denotam uma moral vingativa e reacionária, presente desde sempre nas histórias de super-heróis e, especialmente, em “Batman”.

O filme de Cristopher Nolan, por trazer à tona, de forma mais requintada do que o vulgo dos filmes de super-herói, a questão maniqueísta do bem vencendo o mal, impõe-nos uma encruzilhada moral: de que lado estamos? Do lado do vilão, com sua proposta de revolução terrorista, ou do herói, com sua ética bélico-justiceira?