O texto abaixo é um trabalho acadêmico, realizado por mim em junho de 2013. Foi apresentado na 3ª Semana UMG - Saberes em Diálogo. Eu suprimi a última parte (Conclusão), por entender que ela interessaria estritamente àqueles que estavam cursando meu curso (Gestão para organizações do Terceiro Setor). Se algum maluco quiser ler integralmente, pode me pedir que envio o restante...
O
SUPER-HERÓI COMO FATOR DE MOBILIZAÇÃO EM “BATMAN”
1) Introdução
Este
trabalho objetiva analisar uma suposta relação entre os ideais presentes na
figura simbólica do super-heroi e os processos e mecanismos de mobilização de
grupo observados em trabalhos de autores como MOSCOVICI e HERSEY e BLANCHARD. Através da análise do filme
norte-americano “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”, lançado em 2012,
discutiremos a possibilidade de se motivar à mobilização através de ideais, e,
mais ainda, discutiremos a metodologia de mobilização aplicada a uma ética de
grupo. Num momento em que muito se conversa sobre questões de cunho político e
polêmico – por exemplo, o aumento do estado de coerção, por meio da redução da
maioridade penal e/ou da legalização da pena de morte – cabe a reflexão sobre
os caminhos éticos, políticos, estéticos, pelos quais pode vir uma mobilização,
seja ela de um grupo pequeno, dentro de um ambiente institucional, seja aquela
que se transforma em corrente social. Em Batman – como em outras obras que
envolvem super-heróis, como na graphic
novel Watchmen, de Alan Moore e
Dave Gibbons – há uma visão de mobilização pautada em relações de
sobrevivência, aonde afloram e se desenvolvem sentimentos extremos de justiça e
vingança. Aplicadas ao nosso campo e, sobretudo, à nossa realidade, a das
políticas públicas de cunho social, essas ideias podem apresentar soluções
interessantes de mobilização ampliando nosso campo de visão e atuação.
Para desenvolver esta análise, observaremos,
primeiro, a forma como os super-heróis surgiram nas histórias em quadrinhos
norte-americanas, espalhando-se pelo mundo e alcançando enorme sucesso. A
seguir, faremos breve análise do filme “Batman – O cavaleiro das trevas
ressurge”, para, então, tecermos uma conclusão acerca dos conceitos e
mecanismos de mobilização e liderança contidos no filme e suas relações com o
mundo real.
2) O
super-heroi: origem e mito
O
super-herói – seja o dos quadrinhos, seja o do cinema, seja o dos games – é, no imaginário ocidental
moderno, uma figura de ampla representatividade e influência. O super-herói é a
extrapolação do herói, não só por causa dos superpoderes, mas especialmente por
causa das “supervirtudes” presentes nesse tipo de personagem.
O
primeiro super-herói da história foi o Superman, criado em 1938, nos Estados
Unidos, por uma dupla de artistas judeus – Jerry Siegel (textos) e Joe Shuster
(desenhos). O imediato e imenso sucesso desta criação fez com que,
imediatamente, surgissem inúmeros outros “super-heróis” nos quadrinhos
americanos, como o próprio Batman, criado em 1939 por Bob Kane, e dando origem
ao que conhecemos, hoje, como um subgênero literário: as histórias de
super-herói.
Apesar
de ser considerado uma versão atualizada dos heróis gregos como Ulisses, o
super-herói dos quadrinhos, conceitualmente, é um desdobramento de um tipo de herói
moderno, originário dos folhetins e das novelas de aventura surgidos a partir
da segunda metade do século XIX, como “Os três mosqueteiros” e “Ivanhoé”, embutido
de valores anglo-saxões – a vitória por mérito, o triunfo do bem contra o mal
etc. Este conceito se afasta - um pouco - da definição de Joseph Campbell, do
herói que invariavelmente cumpre sua jornada cíclica para, depois, retornar ao
ponto de partida como um herói transformado. O super-herói, ao menos no ato de
sua criação, é bem mais elementar: ele combate o mal.
Para
além do mero entretenimento, os heróis dos quadrinhos à época do surgimento do
Superman eram, também, reflexo ideológico do anseio social norte-americano por
uma levantada na sua auto-estima e pela reafirmação de sua identidade cultural
e econômica, abaladas pelo “crack” da bolsa em 1929. Por causa da popularidade
e inserção social dos quadrinhos, que saíam nos jornais diários ou em revistas
de amplas tiragens, os super-heróis podiam adquirir, por fim, funções
políticas: o desenvolvimento do super-herói das histórias em quadrinhos
coincidiu com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.
Personagens como o “Capitão América” apareceram neste rastro, propagandeando e
justificando a supremacia bélica e política americana. Assim, o super-herói
extrapolou seu simplista conceito inicial, de defensor do bem perante o mal, tornando-se
a representação simbólica do país aonde foi criado.
Comercial
e ideologicamente, os super-heróis não somente resistiram ao tempo, como
ganharam força, tornando-se marcas valiosíssimas, invadindo o cinema, a
literatura, os videogames e toda a indústria de consumo.
Até
meados da década de 1980, e apesar de evidente evolução narrativa ao longo
deste tempo, foi mantida esta premissa básica nas histórias de super-heróis: a
luta do bem contra o mal. A representação de um justiceiro empenhado em usar sua
força sobre-humana para defender a sociedade. A história de super-heróis, neste
contexto, é a manifestação gráfico-literária para um anseio, ou para um ideal
de justiça coercitiva e maniqueísta, bem próprio do liberalismo norte-americano,
aonde o bem se traduz em um conjunto de valores e virtudes que, se for o caso,
devem ser impostos à força, e se contrapõe ao mal que é inato e se manifesta
como uma força individualizada, e não como um resultado de situações e forças políticas
e sociais. O “vilão”, para usar um termo próprio a este gênero de quadrinhos, é
um ser aparentemente sem outras motivações para fazer o mal, a não ser o desejo
e a vocação para tal. Nesse hipotético e simplista universo ficcional, não há,
evidentemente, contextualização histórica, nem, tampouco, reações complexas de
causa e efeito: as ações humanas são resultantes de si próprias. As noções de
cidadania, direitos humanos ou justiça social são conceitos sem sentido dentro
deste mundo. Não cabe, por exemplo, um super-herói discutindo políticas
públicas com a sociedade civil, visando uma redução da criminalidade e uma
conseqüente diminuição das pancadas que ele próprio distribui.
Embora
esta ainda seja, em essência, a forma como este gênero de ficção narrativa se
apresenta, a década de 1980 apresentou histórias em quadrinhos que trouxeram
reflexões importantes acerca do tema. As principais são “V de Vingança” e “Watchmen”,
escritas pelo britânico Alan Moore, e “Batman – O cavaleiro das trevas”, do
americano Frank Miller. Esta última – publicada na forma de minissérie em 04
partes – é, aliás, a primeira a trazer um personagem-ícone dos quadrinhos de
super-heróis dentro de uma temática adulta, para um público mais maduro. E não
somente isso: “O cavaleiro das trevas” trouxe o super-herói a um mundo real,
palpável e plausível, que refletiu as situações e o contexto histórico e
político da época em que a obra foi escrita. Frank Miller retirou o personagem Batman
do lugar simbólico em que ele se encontrava – o de um garoto que, ao ver seus
pais sendo assassinados, resolve lutar contra o crime vestido de morcego – e colocou-o
em outro âmbito, o de uma figura psicologicamente perturbada, repleta de incoerências
e manias. Além disso, o autor põe outra questão moral: uma pessoa que se
mascara e sai às ruas para fazer justiça com as próprias mãos não seria,
afinal, um criminoso?
A
visão dada por Frank Miller (e também por Alan Moore) aos super-heróis
alavancou um novo nicho mercadológico dentro deste próprio segmento: o
super-herói “adulto”, com aprofundamento da linguagem, questionamentos acerca
da identidade e do caráter dos personagens e, especialmente, uma
contextualização plausível, ou seja, a inserção dos personagens dentro do nosso
universo.
Embora
ainda existam histórias de super-heróis seguindo o roteiro original, simples e
sem conflitos plausíveis, é a abordagem “adulta” aquela que mais interessa aos
leitores maduros. Foi, também, esta a abordagem escolhida para a mais recente
série de filmes cinematográficos do Batman, a partir de 2004.
3) Batman, o filme – uma
análise
Em
princípio, “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”, terceiro e último filme
da série escrita e dirigida por Cristopher Nolan, é mais um típico filme de
super-heróis, que insiste na velha dicotomia maniqueísta entre o herói e o
vilão, bem como na luta entre o bem e o mal.
Dos
filmes-franquia de super-herói, tão em voga desde o princípio dos anos 2000,
“Batman” (e aqui incluímos também os dois filmes que antecederam este que
estamos discutindo) é o mais plausível, na medida em que se busca, sempre,
trazer verossimilhança ao fato, a princípio improvável, de um milionário
resolver se travestir de morcego e se equipar belicamente para fazer justiça
com as próprias mãos. Várias de suas premissas, além de diversos elementos de
seu roteiro, aliás, foram baseados na obra de Frank Miller.
É
precisamente aí que reside o problema: ao se colocar num degrau de seriedade
crítica acima dos demais filmes do gênero, este “Batman” carrega,
obrigatoriamente, questões morais mais profundas e pertinentes.
A
implausibilidade de outros filmes do gênero – como “X-men”, por exemplo, aonde
temos humanos geneticamente alterados das mais diversas e aleatórias maneiras –
insere este tipo de cinema em um lugar ingênuo e de fantasia pura e aceitável,
que não permite que façamos uma análise mais criteriosa de seus conceitos. O
filme de Nolan, ao contrário, nos obriga a isso. Ao colocar em discussão
questões relativas ao uso da violência para imposição da ordem, ou às novas
formas de criminalidade, Batman “dá a cara a tapa” e nos impele a confrontá-lo
com nossa realidade.
Para
discutirmos o filme sob a ótica estrita da mobilização e da liderança, devemos
fazer um recorte no roteiro, que é repleto de histórias e questões paralelas.
Basicamente,
trata-se do seguinte: Batman está aposentado há oito anos. Desde então, a fictícia
cidade de Gotham City (desde sempre, e agora mais do que nunca, uma clara
alusão a Nova Iorque) convive com uma rigorosa lei contra bandidos, instaurada
exatamente no momento em que o vigilante se retirou. Esta lei, por seu rigor e
poder de coerção, impede que surjam novos focos de criminalidade na cidade.
É
neste momento que um novo vilão aparece em Gotham City. Mais do que um novo
rosto, Bane é um vilão diferente, que tem objetivos e estratégias precisos: ele
deseja mudar o mundo para melhor. Para realizar este intento, entretanto, seu
métodos não são dos mais virtuosos. Ele invade a bolsa de valores, explode
bombas e instaura um estado de sítio na cidade. O que nos interessa, aqui, é
que Bane não é um criminoso como tantos outros que vemos nos filmes e nas
histórias em quadrinhos. Como dissemos, ele tem ideais e objetivos, que
extrapolam o simples roubo ou o assassinato. A dinâmica de suas ações, suas
estratégias e, especialmente, seu discurso, pressupõem um Estado falho, uma
sociedade com problemas e vícios. Bane propõe, como solução única, um recomeço,
uma revolução, mesmo que a custo de muita violência.
É,
assim, a falta de comprometimento do Estado, apontada e denunciada pelo vilão
do filme, o fator gerador da mobilização em torno de seus ideais. Bane assume,
ainda que de forma tortuosa, o papel de líder clássico, o líder taylorista, único a conhecer os caminhos
para se alcançar os objetivos – ainda que por ele mesmo propostos e defendidos.
Visto
sob outra ótica, este vilão é o que denominamos, nos dias de hoje, um terrorista, que desconstrói os pilares
do Estado por meio de vandalismo, violência e morte. Eis aí o pior dos vilões,
pois ele torna-se um líder,
arregimenta pessoas em torno de si e faz com que os outros se convençam de que
sua causa é legítima.
Para
coibir a evolução deste vilão, Batman sai de seu retiro e reaparece.
O
personagem Batman sempre carregou, de forma muito clara, a imagem do super-herói
com ideais. Nesta trilogia cinematográfica, as questões relativas a estes ideais
estão muito presentes.
Bruce
Wayne, a figura por trás da máscara de Batman, é um milionário, talvez o
sujeito mais rico da cidade, e escolheu trilhar o caminho da “justiça com as
próprias mãos”, de forma a garantir a segurança pública em Gotham City. Apesar
de manter uma relação cordial com a Lei (embora neste último filme ele seja um
foragido), Batman existe porque a Lei não dá conta do crime. Essa é uma
premissa básica de todos os super-heróis, desde seu surgimento: preencher uma
lacuna do Estado, relativa à escalada da violência.
Esta
postura – a de alguém que, não satisfeito com a forma como o Estado lida com a
violência, resolve agir por conta própria – é apoiada e festejada por muita
gente, tanto dentro do universo de
Batman (os cidadãos de Gotham City, o comissário de polícia) quanto fora (os leitores e telespectadores de
Batman).
Batman
também é, à sua maneira, um mobilizador, na medida em que tem milhões de
seguidores em todo o mundo, que o acompanham e torcem por ele em sua luta
contra criminosos como o Bane.
Assim,
podemos colocar a imagem de Batman em uma posição paralela – e não oposta – à
do vilão Bane. Ambos têm um comprometimento com suas causas. Ambos enxergaram
falhas no sistema e resolveram corrigi-las. E, mais importante, as causas de ambos
são fatores de mobilização, uma vez que as pessoas que os acompanham acreditam nessas causas e endossam-nas.
O
conceito de um vilão idealista não é novo nos quadrinhos e, em especial, nas
histórias do Batman, mas o cinema de entretenimento, ao passar a explorar esta
ideia, populariza-a. Nos últimos anos, não foi somente este filme a fazê-lo:
“Watchmen” e “V de Vingança”, ambos saídos de quadrinhos escritos pelo
britânico Alan Moore, também utilizaram a figura do vilão contestador, que
justifica seus atos em razão das falhas sociais. Trazendo o conceito ao nosso
mundo e ao nosso cotidiano, podemos nos colocar no lugar de Bane em diversos
momentos, mais ou menos complexos: quando ficamos parados no engarrafamento,
por exemplo, ocorre uma situação de crise e insatisfação com o sistema.
Bastaria, então, a voz articulada e coordenada de um “líder” para agregar
forças e gerar a mobilização. Esse líder, esse “Bane” do dia-a-dia, não
justifica, por si, a mobilização pelo uso da força. Mas traz à tona o fato de
que se faz presente o desejo social em resolver as coisas não pela execução da
lei – ou pela mudança constitucional desta – e sim pelo uso da força e pelo
“justiciamento”. O que, aliás, é a mesma forma utilizada pelo Batman e pelos
demais super-heróis.
Exemplos
para isso tornam-se patentes tanto nas recentes manifestações populares vistas
em todo o país – que, por mais que a mídia tente “domá-las”, chamando-as, de
forma insistente, de manifestos “pacíficos apesar de alguns vândalos”, são,
sim, revoltas populares, com predisposição para o rompimento violento de regras
– quanto em ideias e comentários frequentes, como “bandido bom é bandido
morto”, ou em movimentos favoráveis à redução da maioridade penal sob a
justificativa de que existem menores de dezoito anos que “já são bandidos”.
Estas expressões, muito comuns especialmente após a explosão das redes sociais,
denotam uma moral vingativa e reacionária, presente desde sempre nas histórias
de super-heróis e, especialmente, em “Batman”.
O
filme de Cristopher Nolan, por trazer à tona, de forma mais requintada do que o
vulgo dos filmes de super-herói, a questão maniqueísta do bem vencendo o mal,
impõe-nos uma encruzilhada moral: de que lado estamos? Do lado do vilão, com
sua proposta de revolução terrorista, ou do herói, com sua ética
bélico-justiceira?