Em resumo, o livro trata de um futuro onde a humanidade foi dominada por alienígenas silenciosos, que tomam a consciência das pessoas. Estas se tornam, então, “hospedeiras” dos invasores.
Não li o livro: li a sinopse da contracapa, as orelhas, parte do prólogo e dei uma folheada rápida.
Foi mais do que suficiente para perceber que se trata, no mínimo, de uma ideia recorrente no mundo da ficção científica. Um conto, em especial, me parece ter servido de inspiração para a autora, e é disso que se trata este texto – ou vocês pensaram que eu escreveria algo sobre A hospedeira?
Refiro-me ao pequeno conto intitulado Passengers (Passageiros), escrito em 1967 pelo norte-americano Robert Silverberg. Para começo de conversa, Silverberg é um dos mais originais e inventivos escritores de todos os tempos. É um daqueles poucos autores da ficção científica cuja literatura se preocupa menos em descrever as maravilhas ou os fracassos vindouros da ciência e mais em tratar das relações, dos dilemas e dos anseios humanos, sempre de uma forma tocante e elaboradamente ousada. Para isso ele utiliza como artifícios, aí sim, o futuro, a tecnologia fantástica, a robótica, os alienígenas etc etc. No rol de escritores que escrevem assim podemos inserir, também, Philip K. Dick e Ray Bradbury. Destes, sem dúvida Silverberg é o mais sensível.
Passageiros (escrito em 1967, quando o homem sequer tinha chegado à lua) é um conto de 13 páginas, narrado na primeira pessoa e em tempo presente. O narrador acaba de se ver livre de um hospedeiro, que o possuiu pelos últimos dias. Ele não sabe por quanto tempo, exatamente – tudo o que se recorda foi que estava no trabalho pela manhã, três dias atrás. Mas ele não se lembra da tarde de terça: “Deve ter sido quando o Passageiro me possuiu. Talvez no trabalho, talvez na própria sala de reuniões, durante a palestra. Rostos rosados e preocupados ao meu redor; tusso, balanço o corpo, caio da cadeira. Eles balançam a cabeça com tristeza. Ninguém me dá a mão. Ninguém me impede. É muito perigoso interferir com alguém que está com um Passageiro. A possibilidade de um segundo Passageiro estar espreitando próximo em estado incorpóreo, esperando por um hospedeiro, é grande. Assim, evitam-me.”
Ser possuído é isso: algo terrivelmente humilhante para todos, mas não há o que fazer; a humanidade está à mercê desses seres invisíveis e silenciosos e, a esta altura, já adaptada à presença deles. Convive-se com esta horrorosa estranheza pelas ruas: num bar, no ônibus, no trabalho, há sempre alguém com olhos absortos e comportamento inconveniente; está possuído por um Passageiro. A “posse”, no caso, pode durar um ou mais dias. Não se sabe quando começa nem quando termina.
Após nos apresentar este medonho estado de coisas, o narrador, sempre no tempo presente, sai às ruas, ainda curtindo a “ressaca” causada pelo passageiro. É quando se encontra com alguém que irá determinar o restante do conto: uma mulher, que ele inexplicavelmente se recorda de ter dormido com ela durante o transe. Naturalmente ela também estava possuída por um passageiro.
Silverberg trata, em poucas e enxutas páginas, da mais terrível sensação de solidão humana que se pode imaginar. Nesta sua pequena história de fantasmas, estamos todos sós e aprisionados em um destino inexorável, subjugados por espíritos que nem sequer podemos ver, que nos fazem transformar nas mais vis e degradantes criaturas – e que no final das contas somos nós mesmos.
Rapaz, isso é literatura! Mexe com nossas emoções, excita, amedronta. Me faz pensar: “E se acontecesse algo assim, de verdade? Putz!”
Por essas e por outras: não li o livro A hospedeira, e por isso mesmo não desejo aqui cometer a irracionalidade indelicada de criticá-lo. Mas aconselho àqueles que leram, que procurem pelo conto Passageiros, e façam suas comparações entre estas duas leituras que, aparentemente, tratam de temáticas similares.
Esse conto eu li na excepcional coletânea “Mutantes”, lançada por aqui pela editora Melhoramentos no início da década de 1990. Além dele, o livro reúne outras nove pérolas de Roberto Silverberg, uma melhor do que a outra. Ontem, por coincidência, encontrei no sebo do Ânderson, no centro de BH, um pequeno livro do autor, ‘Uma pequena morte”, publicado pela editora 34. Um achado, já que Silverberg, ao que me consta, não é tão conhecido por aqui. Os outros livros que tenho dele são de edição portuguesa.
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