There's a starman waiting in the sky
He'd like to come and meet us
But he thinks he'd blow our minds
David Bowie - Starman
Você está consciente.
A coisa mais terrível de todas é
que você está consciente. Sequer há mais dor: você já a sentiu o suficiente
hoje. Há apenas a nítida sensação de que o fim de tudo está próximo. Isto, e
tão somente esta centelha de sentimento, é agradável em meio a todo o resto.
Você está deitado no que parece
ser uma maca, e não consegue se levantar. Suas duas pernas e seus dois braços
foram totalmente arrancados de forma grotesca. Os quatro membros jazem inertes
em outra maca, ao seu lado, como que para promover ainda mais terror à sua consciência
combalida. Sua barriga se mantém aberta, em um grande e largo corte, de cerca
de 30 centímetros
de diâmetro. Você é capaz de enxergar alguns de seus órgãos se moverem, na luta
inconsciente para se manterem em funcionamento.
Você passou um dia inteiro, e a
manhã seguinte, tentando escapar, de forma inglória e patética, dos alienígenas
que desceram na terra. Somente quando eles te capturaram, por volta das onze da
manhã daquele dia (teria sido ontem?), foi que você percebeu o quanto foi
inútil a sua fuga até então: eles simplesmente ainda não haviam começado a te
perseguir. Estavam ocupados em capturar os outros, aqueles considerados mais
“difíceis”: militares, homens armados, homens fortes que tivessem alguma
aptidão para a luta. Você, inofensivo funcionário dos correios, foi deixado
para o segundo momento. Depois que eles foram suplantados, o que também não
deve ter sido tão complexo, os alienígenas iniciaram, aí sim, a perseguição aos
considerados de segunda força: você e todos os demais homens adultos do
planeta.
Você estava com sua esposa, a mãe
dela, seus filhos e alguns amigos e vizinhos – e suas respectivas famílias –
escondido, ou imaginando estar escondido, dentro de um quartinho, dentro de uma
garagem, no subsolo de um velho edifício comercial de um bairro da periferia de
sua cidade. Cerca de cinqüenta pessoas dentro de um cubículo sem janelas. Ali,
vocês ficaram por quase vinte horas, desde a tarde em que os alienígenas
apareceram, em silêncio constrangedor, combatendo o choro das crianças e o
desespero de quase todos, mas não adiantou absolutamente nada. Em certo momento
da manhã, você e os outros homens do local começaram a sentir uma força
terrível, invisível e incontida, e começaram a ser impelidos a sair do
quartinho. Naquele momento, você e todos os outros já sabiam do que se tratava.
Eram os alienígenas, com seus estranhos e horrendos poderes psíquicos, e vocês
entenderam, então, como foi que eles fizeram com os outros, os considerados de
primeiro escalão.
Você se agarrou de forma
desesperada ao braço de sua esposa, que chorava e gritava, como quase todo
mundo dentro do quartinho. Mas foi preciso soltá-la, caso contrário você a
levaria arrastada junto consigo. Além do mais, todos os homens ali dentro
tentaram fazer dessa maneira, e formou-se, naquele pequeno espaço já
tumultuado, uma grande confusão, com os homens sendo inapelavelmente empurrados
em direção à porta, e as mulheres e crianças sendo atropeladas pelo caminho. A
porta se abriu, como que por milagre, e vocês foram arrastados pela mão
invisível dos alienígenas, para fora do prédio, agora de forma tranqüila,
silenciosa e quase pacífica.
A cerca de cem metros do chão, na
rua, pairava a nave brilhante, monumental e imponente.
Que poder teriam estes seres, você
pensou, para selecionar, à distância, quais humanos arrastariam sem esforço, no
momento adequado, sem disparos, sem bombas ou qualquer tipo de conflito armado?
Qual seria a colossal distância intelectual a nos separar destes monstros?
Você subiu lentamente rumo à
nave, e conseguiu olhar para o lado e perceber muitos outros infelizes iguais a
você, subindo da mesma forma. Talvez fossem milhares. E você se percebeu
voando, e apesar de tudo você não teve medo da altura, pois não havia lugar
para este tipo de fobia naquele momento. Abaixo, era possível notar sua cidade
em silêncio, as ruas desertas, os carros e os ônibus parados, deixados onde
estavam pelos pobres cidadãos cujo destino estava, agora, nas mãos dos extraterrestres.
Em certo momento, ainda voando,
você perdeu a consciência, tudo ao seu redor foi escurecendo, até que não
sobrou nada, a não ser um sonho agradável, repleto de árvores frutíferas:
jabuticabeiras, laranjeiras, imensas mangueiras, muito sol e calor à beira de
uma lagoa de água brilhante, aonde você e seus filhos nadavam com alegria
desmedida.
E neste universo onírico do sonho
você se refugiou, e seu inconsciente procurou, a todo custo, mantê-lo longe da
realidade, mas o tempo passou – algumas horas? um dia? – e você enfim se viu
obrigado a despertar, aqui, neste lugar horrendo. Uma sala de cirurgia, cujas
paredes são repletas de estantes contendo líquidos esverdeados e fluorescentes,
além de instrumentos estranhos, parecidos com maçaricos e seringas gigantes. Um
ambiente verdadeiramente alienígena. E você tentou se levantar da maca, e se
percebeu imobilizado, pela mesma força que o impeliu a sair de seu esconderijo
e a se afastar impiedosamente de sua esposa e dos companheiros humanos. E foi
então que, pela abertura na parede, desprovida de porta, uma figura disforme,
branca e leitosa, sem olhos aparentes e parecida com um enorme verme de goiaba,
adentrou a sala, rastejando silenciosamente sobre pés invisíveis. Este ser
abominável se aproxima de você e para. Abre-se, então, um orifício horizontal
na parte frontal da criatura, como se fosse um olho. Mas não era olho. Deste
orifício sai um jato repentino de um líquido amarelo, parecido com bílis, que
atinge, primeiro, seu braço direito, na altura do ombro. Você sente uma dor
fulminante, a maior que já te foi proporcionada algum dia, e seu braço se
separa facilmente do corpo, caindo no chão como um verdadeiro peso morto. O ser
rasteja calmamente para o outro lado da maca, ignorando seus gritos, e faz o
mesmo com seu braço esquerdo. Em meio à dor infinita, você percebe que o
primeiro corte já não sangra mais: a ferida foi cicatrizada.
E quando você acha que não é
possível haver dor maior, o grande verme despeja seu líquido cósmico e ácido em
suas pernas, arrancando-as, de forma tão fácil quanto o que foi feito com seus
braços. Você desfalece gritando.
Quando você acorda novamente, há
alguma coisa estranha. Tudo parece diferente. A começar pela sala: não há
sangue jorrado, não há bílis de verme espalhada pelos cantos. A sala é a mesma,
mas está limpa, e você ousa pensar que está até cheirosa. E, de fato, há um
incenso, sim, um incenso, aceso num canto da sala, exalando aquela tênue e
agradável fumacinha que remete a meditação, lojas indianas e feirinha hippie.
Você observa seu próprio corpo e
percebe que está tudo no lugar: as pernas, os braços. Você olha, estupefato,
para suas mãos. Abre-as, fecha-as, move os dedos, sente as articulações. Não
parece ter nada de errado. Você se levanta da maca (não há mais força
impedindo-o de fazê-lo) e se prepara para sair do quarto. Então você ouve
passos se aproximando, passos humanos: um pé após outro.
Um homem entra na sala. É um
senhor louro, de olhos claros, como um nórdico, provavelmente com cerca de
cinqüenta anos de idade. Ele veste um jaleco de médico, branco, por cima de uma
camisa pólo também branca. Usa calça jeans clara e sapatos brancos sem cadarços.
- Bom dia, senhor – ele diz. –
Dormiu bem?
Você olha para o rosto
indiferente do homem, e não consegue conceber o que está acontecendo. Você
tenta falar, mas as palavras não saem da boca. É ele quem prossegue, como se
respondesse às questões que você gostaria de fazer:
- Você está numa sala de testes.
Estamos fazendo testes com as emoções humanas. Em você estamos coletando
análises acerca dos seus medos, apreensões, desejos, fraquezas, sonhos, dores
físicas e psíquicas. Há ainda muito trabalho para nós aqui em seu planeta.
Estamos muito satisfeitos com o andamento da missão. O ser humano é um campo de
estudo vasto.
Você, enfim, balbucia algo. Fisicamente
você parece inteiro, mas sua mente está muito fraca.
- Minhas... pernas... e braços...
- Sim, nós criamos algumas
ilusões para você. Reais, não?
Você tenta caminhar e enfim sair
da sala, fugir daquele lugar de pesadelos, mas o homem o impede, não com alguma
força psíquica. Apenas com uma indicação com uma das mãos, como se dissesse:
“pare”. Então, você se lembra de sua esposa e de seus filhos, e encontra forças
para perguntar:
- Onde está minha mulher? Meus
filhos?
- Oh, senhor, não se preocupe.
Posso lhe assegurar que eles gozam de perfeita saúde neste momento, e estão
sendo muito bem-tratados. Não passam nem mesmo pelos mesmos testes que você,
que são, imagino, muito dispendiosos do ponto de vista emocional.
Sua cabeça começa,
repentinamente, a doer. É uma dor intensa, que faz você esquecer as dores que
sentiu – ou imaginou ter sentido – ao ter os membros arrancados. O estranho
continua a falar, agora com recomendações, como se fosse mesmo um médico:
- É muito importante, tanto para
nós quanto para você mesmo, que você fique em repouso. Vamos, deite-se mais um
pouco. Alguém trará comida logo mais – talvez eu mesmo.
Ele sai, e você permanece deitado,
olhando passivamente para o teto. Quando você enfim dorme, terríveis sonhos te
acometem. Primeiro, você é morto das mais diversas formas, em uma sequência sem
fim – uma picada de uma abelha mortal africana, uma terrível superbactéria que
paralisa os seus órgãos, uma facada de um amante de sua esposa, um esmagamento
craniano em um terremoto numa cidade japonesa, um pára-quedas que não abriu
quando você serviu a aeronáutica... Mas, embora você sinta uma dor real e
palpável em todos estes casos, você sempre continua vivo.
A sequência dos seus sonhos é
ainda mais estranha. Agora, você retorna ao ensolarado dia em que tomou o seu
primeiro sorvete de casquinha. Você está com sua mãe, e o sabor escolhido é
chocolate. Tudo é tão real, tão intenso, que até mesmo sua consciência retorna
à infância: você é uma criança de quatro anos. Não sabe mais o que é ter um
trabalho, uma esposa, uma família. Você nem sabe mais como ter filhos. Isso
nunca lhe passou pela cabeça. Na verdade, a coisa mais importante neste momento
é somente o sorvete que você segura, e que derrete casquinha abaixo, lambuzando
suas mãos, seu queixo, seu pescoço, mas não importa. É um momento sublime.
Então você retoma a consciência
dentro do sonho. É desalentador saber que você não é uma criança, e sim um
adulto prisioneiro em uma nave alienígena, no fim dos tempos. De novo você teme
a realidade. De novo, você pensa em sua família. E a consciência se perde mais
uma vez em devaneios.
Agora você está em um barquinho,
remando, no meio de uma terrível tempestade. Com você estão seus dois filhos e
sua mulher. Eles não parecem ter medo. Confiam muito em você e no que você fará
para salvá-los. A tempestade faz o barco ir lá no alto, e depois descer
novamente. Não se vê nada à frente, está tudo escuro. Parece um filme.
Então você acorda mais uma vez. Ou
ainda é sonho? Você fica confuso. O fato é que tudo voltou a ser como era: seus
membros estão arrancados. O grande verme entra vagarosamente na sala e retoma
suas grotescas experiências: desta vez ele cospe seu jato ácido em sua barriga,
mas não para arrancar algum membro: a intenção dele é abrir as suas entranhas,
deixá-las à mostra por algum abominável motivo que, para você, é obscuro.
E você está consciente.
Você está consciente, não sente
mais dor, e não sabe mais o que é e o que não real. O homem nórdico de jaleco
branco teria sido uma invenção da sua mente? Ou teria sido inventado pelos
alienígenas, afim de deixá-lo maluco? Faz alguma diferença? O que é real? O
homem educado ou o grande verme que te desmembra?
O tempo passa, horas, talvez
dias. A luz que entra na sala não é a luz do sol, portanto não é possível saber
que horas são. Você não sente fome, não sente necessidades fisiológicas, nem
tampouco tem medo ou qualquer receio de que sua família esteja, de fato, morta.
Provavelmente está. Você adormece mais uma vez, e desta vez, não se recorda com
o que sonhou.
Quando acorda, o homem louro está
te esperando, sentado próximo aos seus pés, no canto da maca. Ele tem à mão um
prato decorado, destes que se vê em programas de gastronomia ou em restaurantes
finos. No prato há comida. Dá para sentir o cheiro de carne.
- Bom, acabou que fui eu mesmo
quem te trouxe alimento. Tem um bife de filé, batatas fritas e tomates cereja
temperados com azeite. Espera que esteja ao seu gosto, foi o que conseguimos
arrumar.
Você observa o homem com um olhar
profundo. Ele estica o braço para que você possa pegar o prato. Há um garfo e
uma faca encaixados embaixo do bife. Você alcança o prato, senta-se na cama e
começa a comer. É comida mesmo, de verdade. O homem louro o aguarda impassível,
olhando para as paredes brancas da sala. Quando você termina, ele diz:
- Quer um pouco de água?
- Não.
Isso é estranho, mas você não
está com sede. Na verdade, nem sequer estava com fome, mas comeu por um sentido
de educação que preenche os humanos. Até em momentos como agora. Você aceitou
aquele prato para “não fazer desfeita”.
As coisas ao seu redor estão
estranhas. A sala parece de plástico, e, mesmo que você quisesse, não haveria
como identificar de que material são feitas as paredes e os bizarros e
incompreensíveis instrumentos espalhados pelos cantos. Você se sente um pouco
tonto.
- Isso é real?
Pela primeira vez, o homem sorri.
É um sorriso ameno, de alguém que transmite confiança. Ele olha bem em seus
olhos, com seus olhos verdes que transparecem sinceridade, e diz:
- O que o senhor acha? Parece-lhe
real?
- Sim. Parece. Mas quando o
grande verme branco me cortou os braços, e as pernas, e abriu minha barriga,
também pareceu real. Sonhei que era criança, e foi como se eu nunca tivesse me
tornado um adulto. Eu tinha consciência dentro do sonho. Portanto, não sei mais
distinguir o que real e o que não é.
- Suas dúvidas têm procedência.
Você tem plena razão. Nossos testes estão sendo bem-sucedidos.
Você pensa em sua mulher, e em
como ela pode estar sofrendo neste momento. Lágrimas começam a escorrer pelo
seu rosto.
- Por favor, não me façam sofrer
mais. Vocês não têm piedade de mim? De nós?
- Não, senhor. Não temos. Por
favor, deite-se na maca.
Ele pega o prato vazio onde você
comeu e se retira mais uma vez.
E você dorme. E acorda. E, de
novo, não consegue se mover. Mas agora parece que há, mais uma vez, algo novo.
Só há possibilidade de olhar para cima. Você escuta uma conversa, não
necessariamente na sua língua, ou numa língua humana. Parece que há pessoas (ou
vermes?) na sala, confabulando, mas você é incapaz de se virar e vê-los. Você
tem a impressão de estar com o corpo todo engessado. Você ouve passos. Alguém se
aproxima. Será o médico louro? Mas qual a sua (boa) surpresa ao constatar que
quem chega perto de você, mas bem perto mesmo, a ponto de você sentir o barulho
de sua respiração, é ninguém menos que sua esposa. Graças a deus, você pensa. A
despeito de tudo, ela vive. Ela não sorri para você, e você compreende. Ela
veste velhas roupas, que não são as roupas que ela vestia da última vez que
você esteve com ela, naquele quartinho sujo na garagem. São roupas que ela
usava quando vocês iam à praia, anos atrás, e essas roupas já foram até
esquecidas, talvez doadas, mas também isso não o incomoda. O importante é que
ela está ao seu lado, e isso, sem dúvida, lhe dará novas forças para continuar.
Ela permanece ali, no seu campo de visão, por alguns segundos, sem dizer nada, e
então se retira. Você fica satisfeito. Quem sabe não tragam também seus filhos?
Ao longe, você escuta, novamente, uma conversa. Deve ser uma conversa alien.
Novos passos. Desta vez, é o
doutor louro. Ele traz um objeto nas mãos, que você percebe, quando ele o alça
à altura do seu olhar, ser um espelho. Um espelho redondo, de cabo decorado e
bordas muito bonitas. Você pensa em Branca de Neve e os Sete Anões, na madrasta
e seu espelho mágico.
O homem coloca o espelho à sua
frente, para que você se veja refletido. Ao constatar, pelo espelho, o que você
é agora, você não se surpreende.
Não são só braços e pernas que
você não tem. Você não tem mais corpo, não tem feições, boca, orelha. São só os
seus órgãos vitais, interligados por algumas veias e artérias e tubos
artificiais. Seus olhos estão soltos sobre o cérebro, sem crânio, sem pele, sem
músculo a segurá-los. Você se pergunta porque não o retiraram.
O homem louro olha para você e
você o enxerga sorrindo pela segunda vez. Você se sente confortável com a
presença deste homem, ele lhe inspira confiança.
Ele diz:
- Agora, durma um pouco, senhor.
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