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domingo, 26 de maio de 2013

A Seita

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Ela surgiu há cerca de mil anos, em algum local obscuro de Lisboa. Foi trazida não se sabe quando ao Brasil por um falso degredado, que sacrificou sua vida e sua carreira em Portugal em nome e em defesa da Seita. Pode ser que o mesmo tenha ocorrido em outras colônias portuguesas, mas vamos nos ater ao braço brasileiro da Seita, porque é onde ocorre a história que será contada a seguir. De maneira geograficamente mais objetiva, precisamos que este relato acontece em Belo Horizonte, metrópole brasileira não tão vistosa quanto aquelas outras que já conhecemos muito bem e que não precisam ser citadas.

A Seita nasceu com um propósito muito claro e, por assim dizer, simples: dominar o mundo. Para dar cabo deste projeto, foi elaborado um plano, este sim extremamente detalhado, intrincado e dispendioso, e cuja execução deveria durar 1372 anos. Ou seja, faltam ainda alguns séculos para que a Seita tome o seu lugar no topo, não havendo, portanto, cidadão de nossa geração capaz de testemunhar o sucesso ou a falência da coisa, quando for o momento.

Para que não haja falhas ou desvios no cumprimento de todas as etapas deste longo plano, um livro de regras foi deixado pelos fundadores da Seita. Trata-se de regras rigorosas e fatais caso sejam descumpridas. Claro, uma regra capital diz respeito ao anonimato absoluto. Revelar a existência da Seita, seus objetivos e suas particularidades, são práticas passíveis da condenação à morte.

No Brasil, há doze iniciados. Eles foram escolhidos por seus antecessores, que, ao atingir determinada idade, deixaram como legado suas posições de portadores oficiais dos segredos da Seita. Aquele que é escolhido para fazer parte da Seita deve aceitar e obedecer a tudo o que lhe é confiado, sem questionar absolutamente nada. Se ele não aceitar, morrerá, pois, como já ficamos sabendo, ninguém deve ter conhecimento da Seita, a não ser os seus iniciados.

2
Adelino Prado Godinho saiu lentamente do cartório, no centro da cidade, aonde havia resolvido uma tarefa qualquer de ordem burocrática, e que dizia respeito ao pequeno terreno onde morava com sua esposa, seus cachorros e sua criação de galinhas e codornas. Dirigiu-se à praça da rodoviária, aonde entraria em um ônibus para retornar à sua casa. Deveria ter uns quarenta e poucos anos, e deixava transparecer uma postura cansada, a coluna encurvada, os olhos fundos, o rosto cadavérico cheio de rugas precoces, a calvície mal disfarçada por um penteado para a frente da testa. Ele vestia uma camisa de tecido fino, azul clara de bolinhas brancas, de mangas curtas, abotoada até a altura do pescoço. Mesmo de longe, podiam ser percebidos alguns furos na camisa, indicando que era bem velha, e demonstrando também que, possivelmente, seu dono não dispunha de muitas opções de vestimenta. O mesmo se poderia dizer das calças, que eram de linho, brancas, porém amareladas pela umidade, pelo sol, pela chuva, pelo tempo, enfim. Calçava um surrado sapato social marrom, que se poderia dizer que lhe foi doado por alguém. O senhor Adelino Prado Godinho não tinha, definitivamente, a aparência de um indivíduo saudável, tampouco de alguém que tinha a vida financeira solucionada.

A abordagem a um iniciado, segundo rezam os preceitos constantes no Livro da Seita, deve ser feita na rua, ou no meio da multidão. Ninguém mais pode saber que o iniciado foi abordado, por isso o encontro deve se passar como um casual esbarrão de rua, para em seguida evoluir para relações mais aprofundadas. Assim sendo, Valter Dias Silva, de 35 anos, conhecido dentro da seita como iniciado B42, sendo que a letra “B” indica “Brasil”, atravessou a avenida decidido, apertou o passo assim que alcançou a calçada e se aproximou do escolhido.

- O senhor é Adelino Prado Godinho? – Valter nunca havia visto Adelino, nem sequer uma fotografia sua. Aquele deveria ser Adelino, pois as diretrizes de sua missão indicavam que um tipo com aquelas características passaria por aquela rua precisamente naquele momento. Ele faria duas perguntas que iriam dirimir quaisquer tipos de dúvida acerca da identidade do escolhido. A primeira dizia respeito, justamente, ao seu nome. A afirmativa do outro dependeria de sua boa vontade e de sua confiança no interpelador. A segunda pergunta dependeria, naturalmente, da resposta dada.

- Sim. Por quê?

- Ah... não pretendo incomodá-lo. Pode me responder, por favor, qual sua data de nascimento? – A gentileza, neste caso, era fundamental. Ajudava a convencer o outro de que não se tratava de qualquer tipo de enganação ou abordagem maliciosa, tão comum nos dias que correm, sobretudo em cidades de grande porte.

- 24 de julho de 1968. Por que o senhor deseja saber quando nasci?

A resposta dele foi satisfatória. Era o escolhido, não restava mais dúvida. O iniciado B42, que, a despeito de seu árduo treinamento, estava nervoso, ficou aliviado, pois foi bem mais fácil do que imaginara.

- Eu preciso conversar com o senhor mais tranquilamente. O senhor se importa se lhe pago um café?

Aquele era, em qualquer circunstância, um convite estranho. Adelino franziu o cenho, como se demonstrasse não ter gostado nada daquilo. Observou o desconhecido com ar curioso. Ele havia algo a dizer, e sabia seu nome. Uma proposta? Envolveria dinheiro? Resolveu acompanhá-lo, mas sem fazer completamente o jogo dele.

- Podemos nos sentar num banco da praça, que tal?

Valter achou interessante a reação do escolhido. Segundo relatos dos autos da Seita, alguns escolhidos, ao sofrerem a abordagem, rejeitavam-na totalmente, e nova abordagem deveria ser feita em momento posterior. Outros desconfiavam por um bom tempo, e um intrincado trabalho de sujeição deveria ser feito no ato da abordagem, na rua mesmo. Valter estava preparado para isso. Fugir do protocolo não era, naturalmente, uma prática desejada pelos iniciados ao realizar um encontro como aquele, algo tão delicado e que exigia uma responsabilidade imensa. Mas era algo que podia ocorrer, e circunstancialmente ocorria. Ele próprio, Valter, ao ser abordado, há décadas, achou que o velho iniciado era um maníaco sexual que desejava molestá-lo.

3
Caminharam até a praça da rodoviária, que ficava a alguns minutos. A praça estava, como de hábito, repleta de gente. De moradores de rua a recém-chegados de qualquer parte, passando por vendedores de bugiganga chinesa, policiais, portadores da palavra de deus, ladrões, trabalhadores e vagabundos, cidadãos de toda a espécie. Sentaram-se em um banco.

- Senhor Adelino, me chamo Valter. Faço parte de um grupo de pessoas muito seleto. Este grupo é guardião de informações extremamente importantes, que estão sendo guardadas até o dia em que vai acontecer uma grande realização, e este grupo terá alcançado seu objetivo. Nós nos chamamos “A Seita”.

Adelino fitou o outro por um ou dois segundos. Parecia não ter entendido nada, o que era compreensível.

- É uma religião?

Valter sorriu. Aquela era uma reação esperada, e indicava que alguma coisa ele havia entendido.

- Não, não se trata de religião. Envolve religião também, mas não é nada que se pareça com o que esses pregadores fazem – ele apontou para um sujeito no meio da praça, que apontava o dedo para o alto, segurava a bíblia apertada contra o peito e gritava para quem quisesse ouvir. – Na verdade, nós seguimos um plano, e fazemos de tudo para que tudo ocorra como planejado. É tudo bem simples.

- Ok, seu Valter. E o que o seu grupo quer comigo? Vocês estão me seguindo? Fiz alguma coisa contra o seu plano?

- Não, o senhor não fez nada contra o plano. – Valter pensou que, caso isso ocorresse, sim, eles o seguiriam, mas com propósitos muito mais sinistros. – Na verdade, nós estivemos seguindo seus passos, e concluímos que você é a pessoa ideal para fazer parte de nosso grupo, a partir de agora. Você está sendo convidado para fazer parte da Seita.

- Sério? Por quê?

- Bem, isso vem lá de cima, não posso dar maiores detalhes. Acham você um cara legal, ponto.

- E o que eu ganho com isso?

- Bem, sua vida não muda muito. Você terá que ler nosso livro de regras, que contém o plano e o regulamento do grupo. Você deverá manter segredo absoluto. E você deverá realizar algumas tarefas, que lhe serão, eventualmente, passadas. Uma ajuda de custo de três mil e quinhentos reais lhe será fornecida todo o mês. E sua vida terá proteção especial, como acontece com todos nós.

Três mil e quinhentos ao mês, Valter sabia, era bem mais do que o outro ganhava fazendo seus bicos e vendendo os ovos das galinhas que criava. Deveriam seduzi-lo. Mas, para sua surpresa, não foi isso que, aparentemente, chamou a atenção de Godinho.

- Proteção especial? Contra o quê?

- Bem, contra as intempéries da vida, se é que você me entende. Você pode sofrer um acidente automobilístico, por exemplo, e precisará de auxílio.

Adelino franziu de novo a testa, e ficou olhando para o alto, como se estivesse pensando em algo a dizer. E de fato estava:

- Esta proteção envolve também, tipo... Guarda-costas, que te acompanham em qualquer lugar aonde você vai?

- Hmmm... na verdade não. Se ninguém sabe quem somos, não precisamos de seguranças a nos acompanhar.

- Foi o que pensei.

Em questão de segundos, Adelino puxou o punhal da cintura e, antes mesmo que Valter percebesse o que ocorria, sua barriga já havia sido perfurada profundamente e com a destreza que só um matador treinado para aquilo poderia ter. Seus olhos se abriram, como numa última surpresa, e assim ficaram, observando, já inertes, o seu assassino. Adelino se aproximou de Valter e o enlaçou em volta do pescoço com o braço, como quem abraça a um amigo. Endireitou-o, numa tentativa de mantê-lo sentado. Escondeu o punhal, ainda cravado no abdômen de Valter, com o próprio braço do defunto. Não poderia retirá-lo, pois o sangue jorraria para fora. Dessa forma, com Valter sentado e olhando para o nada, demoraria alguns segundos até que alguém percebesse que se tratava de um morto. Adelino já teria, então, desaparecido.

Adelino se levantou e começou a caminhar em direção à rodoviária. Se misturou na multidão e, de fato, sumiu.


O glorioso e complexo plano da Seita começava a ruir.

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