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Ela surgiu há
cerca de mil anos, em algum local obscuro de Lisboa. Foi trazida não se sabe
quando ao Brasil por um falso degredado, que sacrificou sua vida e sua carreira
em Portugal em nome e em defesa da Seita. Pode ser que o mesmo tenha ocorrido
em outras colônias portuguesas, mas vamos nos ater ao braço brasileiro da Seita,
porque é onde ocorre a história que será contada a seguir. De maneira
geograficamente mais objetiva, precisamos que este relato acontece em Belo
Horizonte, metrópole brasileira não tão vistosa quanto aquelas outras que já
conhecemos muito bem e que não precisam ser citadas.
A Seita nasceu
com um propósito muito claro e, por assim dizer, simples: dominar o mundo. Para
dar cabo deste projeto, foi elaborado um plano, este sim extremamente detalhado,
intrincado e dispendioso, e cuja execução deveria durar 1372 anos. Ou seja,
faltam ainda alguns séculos para que a Seita tome o seu lugar no topo, não
havendo, portanto, cidadão de nossa geração capaz de testemunhar o sucesso ou a
falência da coisa, quando for o momento.
Para que não
haja falhas ou desvios no cumprimento de todas as etapas deste longo plano, um
livro de regras foi deixado pelos fundadores da Seita. Trata-se de regras
rigorosas e fatais caso sejam descumpridas. Claro, uma regra capital diz
respeito ao anonimato absoluto. Revelar a existência da Seita, seus objetivos e
suas particularidades, são práticas passíveis da condenação à morte.
No Brasil, há
doze iniciados. Eles foram escolhidos por seus antecessores, que, ao atingir
determinada idade, deixaram como legado suas posições de portadores oficiais
dos segredos da Seita. Aquele que é escolhido para fazer parte da Seita deve
aceitar e obedecer a tudo o que lhe é confiado, sem questionar absolutamente
nada. Se ele não aceitar, morrerá, pois, como já ficamos sabendo, ninguém deve
ter conhecimento da Seita, a não ser os seus iniciados.
2
Adelino Prado
Godinho saiu lentamente do cartório, no centro da cidade, aonde havia resolvido
uma tarefa qualquer de ordem burocrática, e que dizia respeito ao pequeno
terreno onde morava com sua esposa, seus cachorros e sua criação de galinhas e
codornas. Dirigiu-se à praça da rodoviária, aonde entraria em um ônibus para
retornar à sua casa. Deveria ter uns quarenta e poucos anos, e deixava
transparecer uma postura cansada, a coluna encurvada, os olhos fundos, o rosto
cadavérico cheio de rugas precoces, a calvície mal disfarçada por um penteado para
a frente da testa. Ele vestia uma camisa de tecido fino, azul clara de bolinhas
brancas, de mangas curtas, abotoada até a altura do pescoço. Mesmo de longe,
podiam ser percebidos alguns furos na camisa, indicando que era bem velha, e demonstrando
também que, possivelmente, seu dono não dispunha de muitas opções de
vestimenta. O mesmo se poderia dizer das calças, que eram de linho, brancas,
porém amareladas pela umidade, pelo sol, pela chuva, pelo tempo, enfim. Calçava
um surrado sapato social marrom, que se poderia dizer que lhe foi doado por
alguém. O senhor Adelino Prado Godinho não tinha, definitivamente, a aparência
de um indivíduo saudável, tampouco de alguém que tinha a vida financeira solucionada.
A abordagem a um
iniciado, segundo rezam os preceitos constantes no Livro da Seita, deve ser
feita na rua, ou no meio da multidão. Ninguém mais pode saber que o iniciado
foi abordado, por isso o encontro deve se passar como um casual esbarrão de
rua, para em seguida evoluir para relações mais aprofundadas. Assim sendo,
Valter Dias Silva, de 35 anos, conhecido dentro da seita como iniciado B42, sendo
que a letra “B” indica “Brasil”, atravessou a avenida decidido, apertou o passo
assim que alcançou a calçada e se aproximou do escolhido.
- O senhor é
Adelino Prado Godinho? – Valter nunca havia visto Adelino, nem sequer uma
fotografia sua. Aquele deveria ser
Adelino, pois as diretrizes de sua missão indicavam que um tipo com aquelas
características passaria por aquela rua precisamente naquele momento. Ele faria
duas perguntas que iriam dirimir quaisquer tipos de dúvida acerca da identidade
do escolhido. A primeira dizia respeito, justamente, ao seu nome. A afirmativa
do outro dependeria de sua boa vontade e de sua confiança no interpelador. A
segunda pergunta dependeria, naturalmente, da resposta dada.
- Sim. Por quê?
- Ah... não
pretendo incomodá-lo. Pode me responder, por favor, qual sua data de
nascimento? – A gentileza, neste caso, era fundamental. Ajudava a convencer o
outro de que não se tratava de qualquer tipo de enganação ou abordagem
maliciosa, tão comum nos dias que correm, sobretudo em cidades de grande porte.
- 24 de julho de
1968. Por que o senhor deseja saber quando nasci?
A resposta dele
foi satisfatória. Era o escolhido, não restava mais dúvida. O iniciado B42,
que, a despeito de seu árduo treinamento, estava nervoso, ficou aliviado, pois
foi bem mais fácil do que imaginara.
- Eu preciso
conversar com o senhor mais tranquilamente. O senhor se importa se lhe pago um
café?
Aquele era, em
qualquer circunstância, um convite estranho. Adelino franziu o cenho, como se
demonstrasse não ter gostado nada daquilo. Observou o desconhecido com ar
curioso. Ele havia algo a dizer, e sabia seu nome. Uma proposta? Envolveria
dinheiro? Resolveu acompanhá-lo, mas sem fazer completamente o jogo dele.
- Podemos nos
sentar num banco da praça, que tal?
Valter achou
interessante a reação do escolhido. Segundo relatos dos autos da Seita, alguns
escolhidos, ao sofrerem a abordagem, rejeitavam-na totalmente, e nova abordagem
deveria ser feita em momento posterior. Outros desconfiavam por um bom tempo, e
um intrincado trabalho de sujeição deveria ser feito no ato da abordagem, na
rua mesmo. Valter estava preparado para isso. Fugir do protocolo não era,
naturalmente, uma prática desejada pelos iniciados ao realizar um encontro como
aquele, algo tão delicado e que exigia uma responsabilidade imensa. Mas era
algo que podia ocorrer, e circunstancialmente ocorria. Ele próprio, Valter, ao
ser abordado, há décadas, achou que o velho iniciado era um maníaco sexual que
desejava molestá-lo.
3
Caminharam até a
praça da rodoviária, que ficava a alguns minutos. A praça estava, como de
hábito, repleta de gente. De moradores de rua a recém-chegados de qualquer
parte, passando por vendedores de bugiganga chinesa, policiais, portadores da
palavra de deus, ladrões, trabalhadores e vagabundos, cidadãos de toda a
espécie. Sentaram-se em um banco.
- Senhor
Adelino, me chamo Valter. Faço parte de um grupo de pessoas muito seleto. Este
grupo é guardião de informações extremamente importantes, que estão sendo
guardadas até o dia em que vai acontecer uma grande realização, e este grupo
terá alcançado seu objetivo. Nós nos chamamos “A Seita”.
Adelino fitou o
outro por um ou dois segundos. Parecia não ter entendido nada, o que era
compreensível.
- É uma
religião?
Valter sorriu.
Aquela era uma reação esperada, e indicava que alguma coisa ele havia entendido.
- Não, não se
trata de religião. Envolve religião também,
mas não é nada que se pareça com o que esses pregadores fazem – ele apontou
para um sujeito no meio da praça, que apontava o dedo para o alto, segurava a
bíblia apertada contra o peito e gritava para quem quisesse ouvir. – Na
verdade, nós seguimos um plano, e fazemos de tudo para que tudo ocorra como
planejado. É tudo bem simples.
- Ok, seu
Valter. E o que o seu grupo quer comigo? Vocês estão me seguindo? Fiz alguma
coisa contra o seu plano?
- Não, o senhor não
fez nada contra o plano. – Valter pensou que, caso isso ocorresse, sim, eles o
seguiriam, mas com propósitos muito mais sinistros. – Na verdade, nós estivemos
seguindo seus passos, e concluímos que você é a pessoa ideal para fazer parte
de nosso grupo, a partir de agora. Você está sendo convidado para fazer parte
da Seita.
- Sério? Por
quê?
- Bem, isso vem
lá de cima, não posso dar maiores detalhes. Acham você um cara legal, ponto.
- E o que eu
ganho com isso?
- Bem, sua vida
não muda muito. Você terá que ler nosso livro de regras, que contém o plano e o
regulamento do grupo. Você deverá manter segredo absoluto. E você deverá
realizar algumas tarefas, que lhe serão, eventualmente, passadas. Uma ajuda de
custo de três mil e quinhentos reais lhe será fornecida todo o mês. E sua vida
terá proteção especial, como acontece com todos nós.
Três mil e
quinhentos ao mês, Valter sabia, era bem mais do que o outro ganhava fazendo
seus bicos e vendendo os ovos das galinhas que criava. Deveriam seduzi-lo. Mas,
para sua surpresa, não foi isso que, aparentemente, chamou a atenção de
Godinho.
- Proteção
especial? Contra o quê?
- Bem, contra as
intempéries da vida, se é que você me entende. Você pode sofrer um acidente
automobilístico, por exemplo, e precisará de auxílio.
Adelino franziu
de novo a testa, e ficou olhando para o alto, como se estivesse pensando em
algo a dizer. E de fato estava:
- Esta proteção
envolve também, tipo... Guarda-costas, que te acompanham em qualquer lugar aonde
você vai?
- Hmmm... na
verdade não. Se ninguém sabe quem somos, não precisamos de seguranças a nos
acompanhar.
- Foi o que
pensei.
Em questão de
segundos, Adelino puxou o punhal da cintura e, antes mesmo que Valter
percebesse o que ocorria, sua barriga já havia sido perfurada profundamente e
com a destreza que só um matador treinado para aquilo poderia ter. Seus olhos
se abriram, como numa última surpresa, e assim ficaram, observando, já inertes,
o seu assassino. Adelino se aproximou de Valter e o enlaçou em volta do pescoço
com o braço, como quem abraça a um amigo. Endireitou-o, numa tentativa de
mantê-lo sentado. Escondeu o punhal, ainda cravado no abdômen de Valter, com o
próprio braço do defunto. Não poderia retirá-lo, pois o sangue jorraria para
fora. Dessa forma, com Valter sentado e olhando para o nada, demoraria alguns
segundos até que alguém percebesse que se tratava de um morto. Adelino já
teria, então, desaparecido.
Adelino se
levantou e começou a caminhar em direção à rodoviária. Se misturou na multidão
e, de fato, sumiu.
O glorioso e
complexo plano da Seita começava a ruir.
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