Em uma cidade, que
pode ser grande ou pequena – decida você, leitor–, existia uma biblioteca.
Sobre o tamanho da biblioteca, decido eu: era uma enorme biblioteca, das
maiores que já existiram. E, além de grande e espaçosa, era linda, pois tinha
três andares, e cada andar era repleto de prateleiras de alto a baixo, que
pareciam se estender infinitamente. Havia livros de todo os tipos, tamanhos,
encadernações e cores. Havia romances, enciclopédias, livros de arte, de
história, atlas de todos os tipos e épocas (porque o mundo está sempre mudando
sua geografia), além, é claro, de uma grande prateleira só de livros infantis.
Que ficava, naturalmente, mais embaixo. A impressão que se tinha, imediatamente
quando se entrava na biblioteca, é que ela devia conter todos os livros
existentes no mundo.
Era a biblioteca
da cidade. Não sei se havia outras, mas era aquela por quem todo mundo tinha apreço.
Os moradores da cidade achavam que a biblioteca pertencia a eles, e de certa
forma eles tinham razão. É o mesmo sentimento que todos nós temos com relação à
praça da cidade, à igreja da cidade, e até mesmo ao cemitério da cidade. Não
ouse falar mal destas coisas perto de um de nós!
Com a biblioteca
era assim também. Era o orgulho de todos, e, como se não bastasse, a maior
parte das pessoas gostava de freqüentá-la. Não havia muitas atrações na cidade:
cinema era somente um, onde passavam dois filmes por semana: um para crianças e
outro para adultos. Praia não tinha. Por isso, a biblioteca estava sempre cheia.
Isso fazia da cidade uma cidade de leitores: todo mundo estava sempre lendo
algum livro, e depois as pessoas se reuniam nos bancos da praça, no bar da
esquina ou em casa mesmo, e alguém sempre acabava fazendo a pergunta: “que
livro você está lendo?”
Bem, mas você
deve ter lido o título desta história e, ao chegar até aqui, pode ser que
esteja se perguntando: “mas não é uma história de amor?”. Sim, é. Acontece que
ela se passa dentro da biblioteca da cidade, por isso achei importante apresentá-la,
ainda que de forma rápida. Vamos começar, portanto.
Existia na
cidade um senhor chamado Honório. Era um sujeito magro e esguio, tinha cabelos
pretos ondulados e ligeiramente desgrenhados, e usava um bigodinho em estilo
francês, algo absolutamente fora de moda na cidade e, provavelmente, em
qualquer outra parte do mundo. Usava roupas boas, como calças de linho e
camisas de abotoar, feitas para ele sob medida pelo alfaiate da cidade. Seus
sapatos invariavelmente pretos estavam sempre engraxados. Devia ter algo em
torno dos 40 anos, não era casado e trabalhava das seis da manhã ao meio-dia,
de segunda a sexta, na agência dos correios da cidade. Quando findava o
expediente, Honório almoçava, tirava uma soneca e depois ia passar o restante
da tarde na biblioteca.
Honório tinha
fascínio pelos livros de arte. Não havia museu na cidade, e Honório nunca tinha
viajado para muito longe. Por isso ele nunca tinha visto, ao vivo, uma obra de
arte, um quadro que tenha deixado todo mundo de queixo caído, pintado por algum
autor que mudou a forma como as pessoas enxergam a realidade. Havia vários
artistas assim, e Honório sabia disso por causa daquilo que ele via nos livros
da biblioteca. Existiam diversas coleções de livros de arte, catálogos de
museus famosos, biografias de artistas de todas as épocas e escolas artísticas
possíveis, e Honório se deleitava com aquilo. Eventualmente chegavam livros
novos à biblioteca, doados pela família de alguém que faleceu, ou comprados
pela prefeitura da cidade. Honório estava sempre perguntando à bibliotecária,
uma moça gordinha e sisuda, e também muito atenta e comprometida, chamada Lisa,
se haviam adquirido novos livros de arte. Às vezes sim, às vezes não.
Ultimamente,
Honório andava lendo, de forma contínua, um bonito livro, de capa dura e em
formato grande, contando a vida e mostrando as obras do pintor Magritte. Ele
ficara intrigado, como de resto todo mundo fica, com aquele quadro que tem um
cachimbo pintado e, embaixo, a inscrição: “isto não é um cachimbo”. O quadro em
si – ou melhor, o cachimbo – não tinha nada de mais. Era um cachimbo, pintado
com destreza, mas só isso. Não trazia nenhuma atmosfera de magia como nas
pinturas de Monet, nenhum mistério escondido num cantinho como nos poucos e
importantes quadros do mestre Leonardo, nem a criatividade singela e triste das
pinceladas do Van Gogh. O legal do quadro do Magritte, e que deixara Honório
atônito e deslumbrado, era o texto: “isto não é um cachimbo”. O autor estava,
com aquele quadro, brincando com a arte, questionando-a, e Honório se deixou
levar por aquele questionamento. Não pense que foi algo inédito, leitor:
Honório já se deixara levar por causa de outros artistas, de Frida Kahlo a Pablo
Picasso, de Hieronimus Bosch a Paul Gauguin. Estava acontecendo de novo, e ele
iria se debruçar naquele livro por muito tempo ainda. Quem o via sentado à mesa
da biblioteca, profundamente concentrado e com o cenho franzido, às vezes
enrolando a ponta do bigode, virando a página e depois retornando a ela, logo
pensava: “Eis aí um estudioso!”, e havia razão nisso, pois o que Honório estava
fazendo era justamente estudar, embora não houvesse um método muito definido, e
muito menos um propósito escolar naquilo. Ele queria entender aquela obra e
tudo que ela continha: o cachimbo em todos os seus detalhes, o texto, a cabeça
do pintor ao pensar na pintura, e para isso Honório fixava o olhar de forma
obsessiva naquela página do livro. Estava assim há dias.
Um dia, Honório
chegou e, como de hábito, pegou o livro de Magritte na prateleira (que Lisa
sempre organizava no horário de almoço e à tarde, depois que a biblioteca
fechava) e sentou-se em uma cadeira vaga. Ao abrir o livro na página de sempre,
havia ali um pequeno pedaço de papel. Costumava acontecer de alguém marcar o
livro em determinada página, para depois retomar a leitura. Mas este papel
tinha algo escrito, e Honório não pôde deixar de ler: “Olá! Tudo bem? Fiquei
curiosa: por que você lê sempre este livro? E por que sempre esta mesma
página?” Honório fechou o papel nas mãos e olhou para os dois lados. A
biblioteca estava cheia, como sempre, mas não parecia que alguém o observava.
Quer dizer, era difícil afirmar, visto que a biblioteca, como já ficamos
sabendo, tem três andares, e todos eles têm mesas e cadeiras para leitura. Ele
estava no andar de baixo. Alguém lá em cima poderia estar de olho nele. Isto
incomodou Honório. Pelas perguntas no papel, é claro que a pessoa (do sexo
feminino, pois ficou “curiosa”) o observava atentamente há dias, pois sabia que
ele estava lendo o livro do Magritte.
Honório foi até
o balcão, levando juntos o papel e o livro, e se debruçou para falar com a
bibliotecária Lisa. Ela não olhou para ele, pois estava ocupada dando baixa em
alguns livros que haviam sido devolvidos aquela manhã. Honório falava sempre
baixinho, pois era um sujeito tímido – eis aí uma característica dele que eu
havia me esquecido de falar, quando fiz sua descrição. Ele falou “Com licença,
senhora Lisa...” por duas vezes, até que ela parasse o que estava fazendo e
levantasse os olhos para ele. “Senhora Lisa”, ele recomeçou, “você... a
senhora... eu... este papel estava dentro do livro que estou lendo, e...” E
quando Honório levantou o papel para que ela pudesse vê-lo, ela imediatamente
tomou-o das mãos dele, amassou-o e jogou na lixeira ao lado de sua cadeira.
“Não é nada. Costumam deixar marcadores dentro dos livros, quando você ver um,
pode amassar e jogar fora.” Bem... não deu tempo para mais nada. O papel agora
era uma bolinha amassada dentro da lixeira. Honório voltou para a mesa de
leitura e continuou a observar o quadro. “Isto não é um cachimbo”.
Mas ele estava
muito absorto para prosseguir com suas ponderações a respeito do quadro de
Magritte. Uma dúvida se apossou dele: a mulher do bilhete (uma moça? uma
senhora? uma menina?) lhe havia feito perguntas – como ele poderia
respondê-las, se não sabia sequer quem era ela?
No dia seguinte,
após o almoço, foi acometido por uma dor de estômago. Talvez tenha sido culpa
do sanduíche de atum e alface que levou para o lanche no trabalho, pensou.
Decidiu que o melhor a fazer era ficar em casa. Não foi à biblioteca e dormiu
cedo, um sono profundo e sem sonhos.
Quando retornou
ao livro de Magritte, um dia depois, havia dois novos bilhetes lá dentro,
encartados na mesma página, a do quadro do cachimbo. Em um deles, lia-se: “O Sr.
não me respondeu! Por favor, escreva alguma coisa no verso deste mesmo
bilhetinho. O que tem de tão especial nesta página deste livro?”. No outro
bilhete estava escrito: “Nem mesmo veio à biblioteca ontem! Terá sido por minha
causa?”
Que criatura
curiosa, pensou Honório. “Ora, mal me conhece e já fica querendo saber detalhes
de minha vida, intimidades! Por quê não vim à biblioteca ontem? Isso é falta de
respeito!” Ele levantou-se e, mais uma vez munido dos papeis e do livro de
Magritte, dirigiu-se à bibliotecária Lisa.
“Senhora Lisa...
perdão, eu... Veja só isso, senhora Lisa.”, disse ele de supetão, apontando-lhe
os papeis. A bibliotecária Lisa, ocupada como sempre, retirou os óculos do
rosto e olhou para Honório. “Não emprestamos livros de arte, como o senhor bem
deve saber.”
Honório
continuou ali, parado em frente ao balcão. Um jovem passou à sua frente e deu
dois livros à bibliotecária, para que ela fizesse as anotações de empréstimo.
Pensando bem, a sra. Lisa não prestaria mesmo muita atenção a alguns
bilhetinhos endereçados a ele deixados dentro de um livro de arte.
Voltou à mesa.
Decidiu que ia responder à bisbilhoteira misteriosa. Tirou sua esferográfica do
bolso da camisa e começou: “A sra. é uma pessoa curiosa e enxerida. Me deixe em
paz! P.S. Quem é você?”
Pronto! Agora
ela certamente aprendera uma lição. Não se deve incomodar alguém que esteja
concentrado em uma biblioteca.
Logo que chegou
em casa, porém, Honório sentiu um incômodo, uma espécie de angústia, como se
alguém lhe estivesse dando um nó por dentro. Deitado na cama, à noite, não
conseguia retirar da cabeça a mulher dos bilhetes. Como ela seria? Uma colegial
sardenta e de olhões esbugalhados? Ou uma moça obesa, de vestido longo e chapéu
florido? Ou, ainda, uma senhora esguia de pele negra e olhos verdes e
sedutores? Seria uma pessoa simpática e sorridente? Ou seria ranzinza e de cara
amarrada? Ela já teria ido ao correio alguma vez? Estes questionamentos tomaram
conta de seu sono: sonhou que ninguém na cidade conversava mais com ele, apenas
lhe mandavam bilhetes. Seu chefe, na agência do correio, lhe enviava bilhetes e
mais bilhetes, e em cada um estava escrito uma ordem: “faça isso”, faça
aquilo”... Então apareceu René Magritte, o próprio, na agência do correio. Honório
se levantou de sua cadeira, nervoso, suando, e disse: “Monsieur Magritte... é
uma honra! Em que posso lhe ser útil?” Magritte retirou do bolso do paletó um
bloco de anotações e começou a rabiscar algo. Assim como o chefe de Honório,
ele também não lhe diria nada. Apenas lhe entregaria um bilhete. “Pourquoi
avez-vous juste continuer à regarder la même page du livre?”
Então Honório
acordou. Estava atrasado.
Não foi um bom
dia de trabalho. Confundiu-se algumas vezes, distraiu-se ao atender a senhorita
Maura, que desejava enviar um postal ao namorado que está fazendo intercâmbio
na Europa. Escreveu um documento a pedido do chefe, mas perdeu-o. Teve de fazer
tudo de novo. Quando enfim encerrou o expediente, percebeu-se bastante ansioso,
como nunca estivera, para retornar à biblioteca. Nem almoçou, foi direto. A
biblioteca ficava a algumas quadras do correio. Honório praticamente correu em
direção a ela, a ponto de trombar de frente com um transeunte, um rapaz
baixinho que naturalmente esbravejou com ele e o mandou olhar por onde anda.
Entrou. A
biblioteca ainda não estava cheia, pois era o horário de almoço. Dali a cerca
de uma hora, já não haveria nem lugar para sentar. Não nos esqueçamos, a
biblioteca era extremamente frequentada pelos moradores da cidade. Honório se
encaminhou – como sempre fizera – para a grande prateleira dos livros de arte.
Seus olhos passearam pela enorme coleção de História da Arte, que começava com
as pinturas rupestres e terminava nos grafites de rua, prosseguiu pelos livrões
gigantes dos autores renascentistas, pela Enciclopédia dos Impressionistas,
pelas biografias (Dali, Van Gogh, Modigliani, Picasso, Renoir, Chagall), pelos
livros de arte moderna, até que a prateleira chegou repentinamente ao fim. O
livro de Magritte não estava ali! Mas como isso era possível? Em todos estes
dias, ninguém procurara por este livro, a não ser ele próprio... Honório se
virou e começou rapidamente a olhar pelas mesas. Aonde poderia estar o livro?
Quem poderia estar lendo-o? Será que ela?...
Enfim
encontrou-o nas mãos de um menino de uns doze anos, de óculos fundo de garrafa e
cabelo encaracolado. “Ei!”, disse Honório ao menino, com um tom de voz que ele
nunca usava. “Preciso ler este livro. Pode me devolvê-lo, por favor?” O menino
olhou para Honório meio confuso, talvez assustado. “É que... eu preciso fazer
um trabalho sobre esse pintor.” Honório nem ouviu o que o menino tinha a dizer.
Agarrou o livro e começou a puxá-lo das mãos do garoto, que, no entanto,
segurou firme. “Me dê, garoto. Eu acho um outro livro para você, vamos.” Então
uma pessoa se aproximou dos dois. O pai. “Algum problema, filhão?” Honório
largou o livro e imediatamente recuou um passo. “Pai, esse moço não quer deixar
eu fazer o meu trabalho!” disse o garoto, já ensaiando um choro. O pai franziu
o cenho e olhou para Honório com cara de poucos amigos. Honório tentou pedir
desculpas, falar que não era nada daquilo, mas sua voz sequer saiu. Ele foi
andando para trás até sumir no meio de outras pessoas que passavam por ali. “Droga!”,
pensou. Teria de esperar o garoto fazer o trabalho. E se ele encontrasse o
bilhete e jogasse fora? Ou, pior e se ele lesse o bilhete? Seria um desrespeito
por parte do menino, afinal, o bilhete fora escrito para ele, Honório.
Pertencia a ele, e a mais ninguém dentro desta biblioteca.
Foi ficando
tarde: já passava das dezoito horas quando o garoto e o seu pai se levantaram,
deixando o livro do Magritte sobre a mesa, e foram embora, o menino levando
consigo o trabalho, que escrevera todo à mão em folhas soltas de caderno.
Honório observava tudo do andar de cima. Durante todo este período, não fizera
nada além de vigiar o garoto e seu pai. Poderia até ler algum outro livro de
arte enquanto aguardava, mas estava muito tenso para prestar atenção em algo
diferente.
Ele desceu as
escadas calmamente, para não demonstrar que estava ansioso. A biblioteca,
àquela altura, estava vazia. Quando se aproximou do livro, no entanto, a mão da
bibliotecária Lisa foi mais rápida que a dele, e pegou o livro para colocá-lo
de volta em seu lugar na prateleira. “Com licença, sra. Lisa... Vou consultar
este livro, e...” A sra. Lisa, sem olhar para Honório, como era seu hábito,
disse: “São dezoito horas e onze minutos, senhor. A biblioteca está fechada.
Volte amanhã.” Honório ainda tentou uma última cartada: “Mas... sra. Lisa,
preciso apenas olhar dentro do livro, levará um segundo, e...” A bibliotecária
foi andando apressada, sem se voltar, em direção às prateleiras. Havia diversos
outros livros em suas mãos. “Boa noite, senhor.”
O dia seguinte,
vamos direto ao ponto, foi uma verdadeira tortura para Honório. Ele não via a
hora de sair do correio e correr até a biblioteca. E foi o que fez. Para seu
alívio, desta vez o livro estava lá, na prateleira. Havia um novo bilhete.
“Olá! Fiquei muito feliz que, finalmente, o sr. tenha se decidido a conversar
comigo. E, ainda que o senhor resista a me responder, eu não tenho problemas em
responder vossa pergunta: quem sou eu? Sou alguém como você. Venho à biblioteca
todos os dias. Leio muito. E tenho interesse em conhecê-lo, pois o senhor
desperta, sim, a minha curiosidade – que mal há nisso?”
Honório ficou
observando aquele bilhete por alguns minutos. Depois, observou demoradamente as
pessoas ao seu redor. Ela estaria por ali, observando-o? Com certeza. Tirou a
caneta do bolso, virou o lado do bilhete e escreveu com decisão. “Não sei por
que observo sempre a mesma página deste livro. É este quadro. Desejo
compreendê-lo. Pode me ajudar?”
Ao contrário dos
dias anteriores, ele saiu satisfeito da biblioteca. Havia invertido os papeis:
agora seria ela quem lhe devia explicações. Estranhamente, não estava mais tão
curioso com relação às feições da sua interlocutora secreta. Desde que, é
claro, ela lhe respondesse no dia seguinte. Pensando bem, ela lhe havia feito
um questionamento interessante, do qual ele não tinha respostas prontas. Por
que ele observava aquele quadro indefinidamente? Estaria ficando louco? Afinal,
será que ela lhe daria mesmo alguma resposta para suas dúvidas?
No dia seguinte,
no bilhete dentro do livro estava escrito: “...tome-me
por aquilo que manifestamente sou: letras colocadas umas ao lado das outras,
com essa disposição e essa forma que facilitam a leitura, asseguram o
reconhecimento e se abrem mesmo ao aluno mais balbuciante; não pretendo me
arredondar, depois me estirar para tornar-me primeiro o fornilho, depois o tubo
de um cachimbo: não sou nada além das palavras que você está lendo. Michel
Foucault – ‘O caligrama desfeito’. Está na prateleira 233.”
“Puxa vida”,
pensou Honório. Ele guardou o bilhete no bolso da calça e foi atrás do livro
indicado. Não se tratava de um livro, mas de um capítulo de um livro desse tal
de Michel Foucault. Estava na prateleira de livros de filosofia. O livro se
chamava “Isto não é um cachimbo”, e trazia na capa o quadro de Magritte. O
capítulo estava marcado por outro bilhete. Desta vez, o texto do bilhete,
escrito com a mesma caligrafia feminina de sempre, formava um desenho – o
desenho de um cachimbo. “Leia e me alimente. Traga-me sabedoria, e mais
dúvidas. Alimente-me com suas dúvidas. Adoro-as.”
Honório
estremeceu. Que tipo de bilhete seria aquele último? Ficou assustado e, ao
mesmo tempo, excitou-se. Sua “amiga” queria, evidentemente, prosseguir com
aquele jogo, do qual ele também estava gostando. Porém, para continuar, e
principalmente para compreender em sua plenitude e profundidade aquele último
bilhete, ele teria de ler o tal livro por ela indicado.
Bem, ele era um
leitor. Se, na biblioteca, lia apenas livros de arte, pela manhã, no correio,
lia os jornais de maneira regular. Não seria um problema ler rapidamente o
livro e, quem sabe, decifrar, enfim, a enigmática obra-prima de Magritte.
Afinal, era esta a sua obsessão nos últimos dias.
O livro podia
ser emprestado. Assim sendo, a bibliotecária Lisa conferiu a assinatura e o
documento de identidade de Honório, bateu o carimbo, disse a ele que o livro
deveria ser entregue em uma semana, e Honório levou-o para casa. Claro que
entregaria antes: afinal ele seria lido naquela noite mesmo.
Assim, Honório
leu o capítulo 2 de “Isto não é um cachimbo”, do escritor e filósofo francês
Michel Foucault. Tal capítulo era denominado “O caligrama desfeito”, e Honório
descobriu, lendo, o que significava a palavra “caligrama”. E descobriu outras
coisas, embora não tenha tido certeza absoluta se, enfim, desvendara o mistério
do quadro. Na verdade, não compreendera quase nada daquele pequeno livro. Mas
isso não era mais importante.
No dia seguinte,
não havia bilhete algum dentro do livro de Magritte, e ele compreendeu que era
a sua vez de escrever. Assim o fez. “Estou eternamente agradecido. A sra. me
fez mesmo muito bem, e isso foi um ato profundamente tocante da sua parte.
Estou folheando este livro, penso, pela penúltima vez. Despedimo-nos aqui?
Deixo à sra. o privilégio da escolha.”
Mais um dia se
passou, e lá estava a resposta: “Por onde quer que passeies dentro desta
biblioteca, não importa qual livro folheies, não importa em qual andar estejas,
estarei contigo.” Honório, então, procurou algum novo livro para ler na estante
de livros de arte. Como não encontrara nada interessante, passou à prateleira
dos romances. O Dom Quixote, de Cervantes. Eis uma leitura interessante para
passar o restante da tarde. Ele, que não tinha hábito de ler a não ser livros de
arte, leu cerca de cem páginas do Dom Quixote, até que fosse hora de fechar. Quando
percebeu que a bibliotecária Lisa corria pelas mesas, recolhendo os livros e
guardando-os novamente nas respectivas prateleiras, Honório retirou do bolso um
pedaço de papel, escreveu algo nele, que não ficaremos sabendo o que foi,
encartou no volume, que foi deixado sobre a mesa, e se retirou.
E no dia
seguinte, dentro do Dom Quixote, lá estava a resposta ao bilhete. Honório
leu-a, sorriu e respondeu-a. E assim foi: quando um escrevia, o outro respondia
um dia depois. Era uma conversa unilateral, lenta, como se cada um estivesse em
um ponto distante do universo e a mensagem demorasse a chegar porque devesse
atravessar milhões e milhões de quilômetros. E, no entanto, estavam próximos um
do outro – quem sabe um ao lado do outro. Mas Honório não se importava mais com
isso. Ele sabia, estava sendo observado – afinal, como é que ela poderia saber
em qual livro procurar o bilhete? Mas ele não queria saber quem era a sua
interlocutora, se contentava com aquilo, e ainda por cima agradava-lhe que a
iniciativa partisse sempre dele, ou seja, se quisessem mudar de livro, era
sempre ele quem o fazia. Primeiro foi o Dom Quixote, e quando Honório o leu
inteiro, simplesmente pegou outro livro, e a comunicação via bilhetinhos sequer
foi interrompida.
Eu não sei se
eles conversavam sobre os livros que Honório lia ou sobre outros assuntos. Tudo
o que posso afirmar é que, se no início, se dirigiam um ao outro por “senhor” e
“senhora”, o tempo fez com que começassem a se tratar em modo cada vez mais
íntimo: primeiro, por “você”, depois por adjetivos como “minha cara”, “meu
querido”, até que por fim os bilhetes traziam amenidades como “fiquei com
saudades de você, meu amor”.
Os
anos se passaram. Vez ou outra, um bilhete deixava de ser respondido no dia
seguinte, porque ou ele ou ela deixavam de ir à biblioteca, por um motivo
qualquer. Mas isso tampouco o deixava preocupado. Honório sabia que, no dia
seguinte, lá estaria o bilhetinho, esperando-o. Não havia mais como cortar
aquela comunicação, a não ser que um dos dois assim desejasse.
E
será que isso ocorreu, algum dia?
Consta
que, certo dia, após ponderar bastante, ela resolveu se mostrar a Honório, em
carne e osso. Claro, não seria algo assim, repentino: “oi, cheguei!” Deveriam
conversar muito antes, pois essa era uma decisão importante na vida de ambos.
E, como sabemos, a comunicação entre eles era bem lenta. Honório se recusou
terminantemente a vê-la. Foi irredutível até o fim. Ela se mostrou magoada,
pois queria que conversassem mais abertamente, ela queria compartilhar as
emoções que os dois sentiam, um próximo ao outro, e não mais por meio de
bilhetes, que ela agora estava considerando frios e sem graça. Um dia, ela
escreveu: “amanhã, quer você queira quer não, eu me mostrarei a você.” Na
verdade, ela poderia ter se mostrado sem aviso, mas, em sinal de respeito,
decidiu dizer antes de fazê-lo. Foi um erro.
Porque
Honório não apareceu mais na biblioteca. Nunca mais. E, como soubesse que ela poderia
procurá-lo em seu trabalho, pediu repentina demissão, após não sei quantos anos
de serviços fielmente prestados ao correio. O seu chefe disse a ele que o
acerto de contas seria dali a uma semana. Honório pediu ao chefe que
depositasse em seu nome, pois ele o retiraria em outro lugar, não mais naquela
cidade. Chegou em casa, arrumou suas malas, reuniu suas economias em uma
sacolinha e partiu, rumo à estação de trem da cidade. Tomou o rumo da capital,
e a partir daí não temos mais notícias dele, e nem muito menos de seu primeiro
e único amor.
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