Uma carta
voltou, como acontece com tantas outras, à minha seção no escritório central
dos correios. O motivo estava escrito a mão pelo encarregado, cuja caligrafia
era quase ilegível: “Rua dos Caiapós, 234 - endereço inexistente”.
Até aí, tudo
bem. Em meu ofício, ocorre de recebermos cerca de cem correspondências por dia
pela mesma razão. Em geral isso acontece pela pressa ou pela desatenção do
remetente. O que, convenhamos, é quase a mesma coisa.
No caso
específico daquela carta, me chamou a atenção a sua aparência singular. Era um
envelope retangular, branco, parecendo antigo. Talvez vindo de alguma destas
papelarias dos bairros de rico, ou dos shoppings, que vendem artigos de luxo
imitando antiguidades, como se tudo do passado fosse melhor ou mais bonito do
que as coisas de agora. Os nomes, tanto do remetente quanto do destinatário,
estavam lindamente escritos em tinta preta, se vocês me permitem o adjetivo. É
raro ver alguém com uma caligrafia dessas, nos dias de hoje. O selo era, com
certeza, antigo, de uma época em que os selos não traziam nem data. Vinha
estampado um rosto, provavelmente algum presidente de antigamente, mas não
havia o seu nome. Estava escrito apenas: “Brazil – 100 réis – Correio”. O
carimbo, porém, era recente e reconhecível: certamente aquela carta estivera em
nossa agência, e algum carimbador inconseqüente deixara-a passar, mesmo com
aquele selo improvável. Ao carteiro, toca entregar a carta no endereço correto,
não importando a proveniência ou a autenticidade do selo. Se ele não encontra
tal endereço, retorna com a carta, e ela vem parar na minha mesa. Eis o que
ocorreu, em resumo.
A princípio,
julguei tudo aquilo como sendo um chiste. Uma brincadeira de alguém espirituoso
da minha seção, para me fazer confuso, me observar de longe e rir do meu rosto
incrédulo. Isto já foi feito antes, de outras maneiras, porém.
Se não fosse
assim, esta carta teria, certamente, despertado a atenção de algum de meus
colegas. No entanto, ninguém deu a mínima para o episódio – ou melhor, aquilo
nem sequer foi considerado um episódio: apenas uma correspondência com endereço
inexistente, algo enfadonho, corriqueiro, e que dizia respeito apenas a mim e à
minha função de remeter a carta de volta ao seu autor, se isso fosse possível.
Não o fiz
imediatamente; guardei a carta em minha gaveta. Se se tratasse de brincadeira,
eu não desejava ser pego assim, facilmente, pelo sujeito humorista, quem quer
que fosse. Por isso, decidi guardá-la, examiná-la posteriormente e tentar desmascarar
o autor do trote. Mas confesso que o excesso de trabalho e os atropelos do
ofício fizeram-me esquecer dela: permaneceu guardada e intocada por trinta
dias.
Porque trinta
dias depois chegou às minhas mãos outra carta com endereço errado, do mesmo
autor, para o mesmo destinatário. Aliás, era uma carta com as mesmas
características da primeira. O envelope em estilo antigo, o selo de cem réis, a
caligrafia rebuscada. Àquele ponto, percebi que seria difícil tratar-se de uma
facécia: quem se daria ao trabalho de, um mês depois, repetir todo o processo?
Não tinha graça. Comecei a desconfiar: haveria algo fora dos quadrantes ali.
Peguei as duas
cartas e as levei para casa. Abri a primeira: dentro, havia uma folha de
caderno pautado, dobrada duas vezes para caber no envelope. Estava escrita,
evidentemente, pela mesma pessoa que escrevera os nomes no envelope:
percebia-se pela caligrafia de novo acurada. Era uma declaração de amor. Seu
autor se dizia perdido pela Senhorita..., apesar de todos os fatores que
poderiam impossibilitar o relacionamento entre os dois: a rejeição dos pais
dela, o fato de ele ser um humilde pobretão que morava no Barro Preto e,
especialmente, por ser um trabalhador de poucas perspectivas econômicas, e não
um estudante, um filho de nobres, alguém que, enfim, pudesse levá-la a Paris ou
mesmo ao Rio de Janeiro para passear. Ele lamentava todas estas coisas, mas
dizia que seu amor por ela era capaz de vencer quaisquer trincheiras e
obstáculos, e que ele estava disposto a lutar bravamente por ela, contra tudo e
todos. Ao final da folha, a data: 26 de outubro, 1914.
O segundo
envelope também trazia uma folha de caderno dobrada. Reproduzo o texto contido
nela, na íntegra:
Minha....
Não consigo compreender as motivações pelas
quais a Senhora não respondeu à carta que te mandei um mês atrás. No que toca
aos serviços dos correios, parece que ela foi entregue. Ao menos assim me
informaram os responsáveis pela tarefa. Pretendo crer que teus genitores, que
tão pouco apreço têm pela minha pessoa, são os responsáveis pela interceptação
da carta, e, em razão deste fato, pelo vosso desconhecimento acerca dela. Pois
caso seja qualquer outro o motivo, significará que não compartilhas os mesmos
sentimentos que eu.
Assim sendo, realizo nova tentativa: cá
estou, se não de corpo presente, ao menos em espírito, através destas palavras
rabiscadas, mais uma vez a declarar pela Senhora não só o meu amor, mas também
o meu compromisso em me casar contigo. É o que farei, pois assim te jurei, e,
como já sabes, sou um homem que honra o que fala.
Já não me importa o que pensam os teus
familiares, pois não foi a eles que dei a minha palavra, e nem tampouco foi a
eles que ofereci meu coração.
Fico, então, esperando, até que resolvas
responder, ou então até que teus pais enfim deixem que leias minhas cartas, e
compreendam que minhas intenções para com a Senhora são as mais nobres e
preciosas deste mundo.
Do sempre seu, ....
Belo Horizonte, 27 de novembro, 1914
Mais do que
qualquer outra coisa neste estranho caso, o que me intrigou e, sobretudo, me
afligiu, foi o que o autor dissera no primeiro parágrafo, a respeito do envio
da carta: “No que toca aos serviços dos correios, parece que ela foi entregue.
Ao menos assim me informaram os responsáveis pela tarefa.” Muito estranho!
Como, então, elas – a primeira e a segunda cartas – haviam voltado aos
correios, sob a alegação de “endereço inexistente”? Havia algo inquietante
naquilo, e eu me senti na obrigação de investigar.
Na manhã
seguinte, cedo, caminhei até endereço referido no remetente. A rua dos Caiapós
é um local movimentado do centro, próximo à rodoviária da cidade. Quem é meu
conterrâneo sabe bem o que se passa por lá. Ao dizermos “lá na Caiapós”,
estamos usando o nome da rua, e por conseqüência do grupo indígena que empresta
o nome a ela, para dizer “lá no baixo meretrício”, ou “lá na zona”, ou ainda
“lá no puteiro”, ou como quer que a sua puerilidade prefira se referir à oferta
de sexo por dinheiro. Porque a Rua dos Caiapós, desde há muito, é, quase
totalmente, um aglomerado de velhos e decrépitos hotéis – que se denominam
hotéis somente para fugir das letras frias da Lei – aonde se hospedam e se
prostituem moças de todo o tipo, idade, altura, peso, classe social, cor de
pele, e por onde circulam homens igualmente de genética e origem variadas, em
busca, óbvio, de sexo pago. É uma rua onde indubitavelmente impera a
decadência. Décadas atrás, porém, a rua era apenas uma parte “boêmia” da cidade,
abrigando cassinos, bordeis, restaurantes e bares, tudo com muita classe e relativo
bom gosto, segundo os historiadores. Havia, também, residências familiares ao
longo da rua.
Andando por ela,
de um lado para outro, foi fácil identificar que, realmente, o número duzentos
e trinta e quatro do envelope não existia. Pode ser que a casa tenha sido
demolida, pensei. Ou, o que é mais provável, mudou-se a numeração, como ocorre
de tantos em tantos anos em uma metrópole que cresce indefinidamente como a
minha.
Foi então que me
deparei com uma antiga construção, destoante da paisagem da Rua dos Caiapós, e
da qual só restava, praticamente, a fachada. Era uma fachada de arquitetura antiga,
como a do prédio central dos correios. Minha impressão foi de que aquela
construção, no passado, era um sobrado, ou algo assim. Agora, da fachada para
dentro, só restavam escombros, pedaços de tijolo, telhas e bastante lixo
acumulado, certamente deixado por moradores não-autorizados que por ali
passaram ao longo de muitos e muitos anos. Era uma casa de dois andares. Ainda
restavam as grades do que parecia ser uma varanda, de frente para a rua, mas,
em lugar da varanda, havia agora somente lixo. As janelas frontais, sobre a
varanda, foram cobertas por cimento e, por cima do cimento, havia restos de
cartazes publicitários, tipo “lambe-lambe”. Acima, já próximo ao telhado, como
que para decorar e tornar imponente a fachada, havia uma série de floreios
esculpidos na parede. Ainda bastante intactos e visíveis, se podia ler os
números “234”
dentro de um círculo todo decorado, bem no meio dos floreios.
Era ali,
portanto, a residência da Senhora..., por quem o Senhor... estivera
perdidamente apaixonado, nos idos de 1914.
Havia uma loja
de produtos chineses na esquina. Comprei um tubo de cola, e, com ela, lacrei
novamente os envelopes. Voltei à casa e coloquei-os na caixa de correio – que
também se conservava intacta. O que mais
eu poderia fazer?
As cartas
estavam, enfim, entregues, ainda que com algum atraso.
Dias depois,
chegou às minhas mãos mais uma missiva do insistente galanteador do passado. De
novo, ninguém deu atenção a ela. Desta vez, pequei pela indiscrição e decidi
abrir o envelope sem pestanejar.
Dizia a carta:
Minha querida
Não serias capaz sequer de imaginar o
tamanho de minha alegria e satisfação ao receber uma tua resposta. Também não
consegui encontrar o motivo para o atraso com que as cartas chegaram às tuas
mãos, mas folgo em saber que não houve interferência dos teus pais. Este fato,
porém, torna-se pouco importante diante da notícia que me trouxestes, de que
também foste acossada pelo fogo da paixão, e que fomos, sem dúvida, feitos um
para o outro. Disso eu tinha certeza!
Assim sendo, seria mesmo interessante se eu
fosse, de pessoa, à tua residência, afim de me declarar aos teus. O que achas?
Não te parece uma idéia aprazível? Aguardo, portanto – e ansiosamente – a tua
resposta, que, tenho certeza, será positiva, para, então, enviar um bilhetinho
ao teu pai, marcando o encontro. Mas este bilhetinho, eu o farei chegar em
mãos, através de um mensageiro.
Para ter a certeza que chegará no tempo
certo!
Do sempre seu, ....
Belo Horizonte, 16 de dezembro de 1914
Esta foi a
última carta do passado a aparecer. Naturalmente, coloquei-a na caixa de
correio da casa abandonada, da mesma forma que fiz com as anteriores. Não
restavam dúvidas de que as cartas haviam chegado ao destinatário. Missão
cumprida, e a minha intervenção tinha sido decisiva. Não me detive em saber o
porquê deste desvio de rota, de tempo, de espaço, entre o momento em que tais
cartas chegaram ao correio, há quase cem anos, e o momento em que elas
apareceram na minha mesa. Tampouco fui capaz de avaliar como estas cartas
puderam, novamente, retornar no tempo, após terem sido colocadas em uma caixa
de correios de um sobrado há muito esquecido. Assim como estes fatos tornaram-se
pouco importantes para o autor das cartas, já que elas chegaram à sua amada,
para mim também ficou obsoleto encontrar razões científicas para esta história.
Há um motivo – sempre há –, mas creio que ele esteja fora do meu alcance. Só
sei que estive participando de alguma coisa bastante especial. Espero, espero mesmo,
que este casal tenha vivido momentos realmente felizes depois do que aconteceu.
Isso é tudo.
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